quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Sobre o ressentimento

Em um dos inumeráveis e monótonos protestos ocorridos na PUC-SP, lembro-me de ter visto uma faixa pendurada com o aviso: «Burguês, nós nos veremos na Revolução!», ou algo que o valha, possivelmente com algum erro de concordância. Na hora, pensei em como o militante autor daquela asneira era idiota. Idiota e ressentido. Desgostava-me em particular a idéia de que o sujeito, a despeito de ser um imbecil, ainda precisasse projetar para o futuro seu acerto de contas com a burguesia. Minha crítica de então era, grosso modo, a mesma que os nietzschianos fazem ao cristianismo. Aquele militante era idiota porque era fraco, e, incapaz de dar vazão a sua raiva, dizia ao objeto de seu impulso (e a si mesmo) que um dia a justiça seria feita – isto é, os burgueses como eu, minha mãe e você seriam fuzilados.

Mas será esse o mesmo sentimento que anima o cristão a pensar no juízo final? Serão cristãos e comunistas igualmente fracos e ressentidos? É certo que muitas pessoas, ao se perceberem incapazes de se vingar aqui, neste mundo, projetam seu acerto de contas para o outro. Quem nunca se encontrou fraco e impotente diante de uma agressão e desejou que Deus, no momento de julgar uns e outros, fizesse justiça e castigasse o agressor? Nada há de mais humano. Em sua Legenda Áurea, o dominicano Jacopo narra o seguinte episódio da vida de São Tomé:
«Mas ele [o santo] não comia nem bebia e mantinha os olhos constantemente voltados para o Céu, o que desagradou um serviçal da corte, que esbofeteou o apóstolo de Deus. Este então disse: ‘É melhor para você ser punido na terra com um castigo passageiro e ser futuramente perdoado. Eu não me levantarei enquanto a mão que me bateu não for trazida até aqui por cães’. Ora, quando aquele serviçal foi buscar água na fonte, um leão estrangulou-o e bebeu seu sangue. Cães dilaceraram seu cadáver e um deles, preto, levou a mão direita até o local do banquete».

Tanto Jacopo como Agostinho questionam a autenticidade do relato. Ademais, se o fato realmente ocorreu, dizem, não deve ser interpretado como vingança, mas como predição. Em outras palavras, se o relato é autêntico, então São Tomé não desejou vingança contra o serviçal, mas previu o que lhe aconteceria e pensou que, no fim das contas, melhor era ao serviçal ser castigado em vida do que pagar depois.

Autêntico ou não, penso que tal relato deve fazer os pouco simpáticos ao cristianismo exultarem de satisfação. É, para eles, mais uma prova do ressentimento cristão. Não há, crêem eles, nenhuma justiça divina, e quem não acerta as contas neste mundo, bem, não o faz porque não consegue, porque é fraco e ressentido – e, nesse caso, precisa projetar o fim de sua frustração para o outro mundo.

Creio, porém, que o cristão está mais imune ao ressentimento do que comunistas, nietzschianos e ateus em geral. (Eu estava prestes a escrever que é muito fácil mostrar como os cristãos são menos ressentidos do que os outros, e que eu poderia dar uma dezena de razões, mas que daria apenas uma, pois isso tudo é óbvio. Na verdade, porém, meu distúrbio de déficit de atenção está quase me fazendo tremer e eu quero acabar logo esse textinho, então vou dar apenas uma razão, não porque tudo isso seja óbvio e eu queira afetar um ar de superioridade, mas apenas porque eu quero fumar um cigarro no quintal e pensar em outra coisa.)

Meditemos alguns instantes nalgumas famosas palavras do Evangelho: «Ouvistes que foi dito: Olho por olho e dente por dente. Eu, porém, vos digo: não resistais ao homem mau». Se assumimos que não há transcendência, nem Deus e tampouco justiça divina, então nossa resposta perante aquele que nos dá um tabefe na face direita será devolver o tabefe. Ocorre que somos todos fracos, e, se somos mais fortes que alguns – aos quais podemos devolver o tabefe –, é inevitável que nos deparemos com alguém mais forte e voltemos a ser, como quase sempre, fracos, de modo que ou (1) tentaremos devolver o tabefe e receberemos muitos outros ou (2) nos resignaremos. A conseqüência de qualquer uma das duas situações será o ressentimento.

Entretanto, diferentemente do comunista, do nietzschiano e de outros ateus, o cristão tem fé, isto é, tem esperança. Para citar Bento XVI em sua última carta encíclica, «uma esperança fiável, em virtude da qual podemos afrontar nosso presente: o presente, mesmo um presente penoso, pode ser vivido e aceito se ele conduz a um término e se nós podemos estar seguros desse término, se esse término é tão grande que ele pode justificar os esforços do caminho». É claro que um sujeito que só consegue aceitar um tapa na face se puder pensar em como seu agressor sofrerá no inferno não é lá muito cristão. Ele está a mercê do mais reles ressentimento, bem como os ateus. Se, ao contrário, ele pensar em sua agressão como um episódio de seu presente, por vezes penoso, mas cujo término é certo, grande e justifica seus esforços, não precisará se apoiar em delírios de vingança, pois que há algo maior a esperá-lo. Esse término tem necessariamente que ser em outro mundo (eu, pessoalmente, acho mais fácil acreditar na vida eterna e nos milagres bíblicos do que na «emancipação humana»).

Para o ateu, só há o ressentimento nesta vida e a não-existência depois dela. O cristão, por outro lado, tem a esperança de que, ao tentar imitar nosso Senhor, será recompensado depois desta vida. É mais do que óbvio que essa imitação é duríssima. No mais, é forçoso dizer que a idéia de não resistir ao homem mal provoca não poucos mal-entendidos. Chestov, em Les Commencements et les Fins, afirma: «On ne peut le nier, la doctrine de la non-résistance au mal est de tout ce que nous lisons dans l’Evangile ce qu’il y a de plus terrible et en même temps ce qu’il y a de plus irrationnel et de plus énigmatique. Tout notre être raisonnable se cabre à la pensée que le malfaiteur garde la pleine liberté matérielle d’accomplir ses forfaits. Comment permettre à un brigand de tuer sous tes yeux un enfant innocent sans dégaîner ton épée?» Ora, o exemplo de Chestov não é apenas um mal-entendido, é um crime (não falo do assassinato da criança inocente, o que é evidente, mas de assisti-lo sem nada fazer). Ter paciência com aquele que nos faz um mal e até mesmo perdoá-lo é algo muito diferente de não resistir ao mal no mundo.

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Sobre samba e arrogância

Ontem, no trabalho, conversei rapidamente com o Dionisius sobre samba. Nossa questão era a diferença de qualidade entre o que compositores famosos produziram – Cartola, Nelson, Paulinho – e a maior parte do que se ouve hoje sob o nome de samba. Trata-se de uma questão sobre a qual já refleti diversas vezes: eu gosto muito de samba, é das coisas que mais gosto de escutar; gosto, porém, daquilo que eu mesmo considero «samba», isto é, uma dúzia de cantores e compositores notáveis, e o resto eu acho ruim e nem mesmo considero samba.

Então, posso dizer que, além dos três citados acima, gosto de Nelson Sargento, Dona Ivone Lara, Leci Brandão, Monarco e toda a velha guarda da Portela, Adoniran Barbosa, Geraldo Filme, etc. etc. O resto eu rotulo como «pagode». Trata-se de uma diferenciação bastante arbitrária. Sambistas muito bons não vêem problema em chamar de «pagode» a música que fazem, como o faz, por exemplo, Paulinho:

Domingo, lá na casa do Vavá
Teve um tremendo pagode
Que você não pode imaginar

Segundo me diz a Agenda do Samba e Choro, «pagode, na verdade, não é um estilo, mas a reunião das pessoas para cantar samba». Isso faz sentido e espero um dia poder me debruçar sobre a questão com mais atenção. De qualquer forma, o que importa no momento é que considero «samba» todos os sambas bons e «pagode» todos os sambas ruins. Sim, é uma definição arbitrária e arrogante. E a maior parte de meus amigos que gostam de samba fazem o mesmo.

Para voltar a minha conversa com Dionisius, é impressionante o abismo que separa o samba do pagode. Conheço muita gente que até simpatiza com os sambistas mais antigos, mas tem verdadeira ojeriza do pagode e sua cultura. Neste aspecto, estou de acordo com meu colega de trabalho (chefe, na verdade). Sucede que, para mim, o mesmo acontece com outros estilos populares. No que se refere a blues e jazz, por exemplo, gosto de uma dúzia de músicos, mas me pesa no desgosto toda a degenerescência desses estilos que, não obstante, continua a se entender como blues e jazz. Então, quando eu vejo alguém que sente náuseas ao ouvir falar de pagode, mas que se declara um amante de blues, jazz e rock, pergunto-me se ele tem a consciência de que as distâncias entre samba e pagode, de um lado, e blues e rock, de outro, são da mesma grandeza. Ademais, o pagode costuma ser muito ruim devido a sua proposta puramente comercial. O que dizer, porém, de ruídos chamados de «trash metal», «black metal melódico» e outras excrescências? Os sujeitos que produzem essas coisas não têm nem mesmo a desculpa da proposta comercial. Eles não fazem música pra se vender, eles apenas são ruins e têm um péssimo gosto – e não só para a música, suas vestimentas demonstram total falta de compreensão da realidade mesma.

A propósito, acho ridículo um sujeito que gosta de cultura popular e faz discursos esnobes e elitistas. Um sujeito como eu. Você sabe, daqueles que diz «nossa, você gosta desse rock moderninho? Eu só ouço Black Sabbath». O que ele quer, aplausos? É particularmente ridículo quando o sujeito não tem a menor percepção de que o está sendo. Ou como fez uma amiga minha, de quem gosto muito, que disse não admitir que seu namorado nunca tivesse lido Nietzsche. Sem entrar no mérito do que realmente vale o filósofo alemão, trata-se da típica arrogância de amantes da cultura popular. Imagino o constrangimento que minha amiga passaria se fizesse seu comentário diante de alguém cujas referências são mais profundas.

- Eu não posso namorar com um cara que nunca leu Nietzsche!
- E você já leu, digamos [pigarro], Aristóteles ou Sto. Tomás?
- Não.
- Já leu Tucídides ou Heródoto?
- Não.
- Já ouviu Jean-Philippe Rameau ou Domenico Scarlatti?
- Nunca.

Ou se essa amiga, um dia, gostar de um rapaz de bom gosto e ouvir dele:

- Sinto muito, mas eu não posso namorar com alguém que não saiba qual é o movimento da terceira parte do primeiro dos Brandenburgische Konzerte.

domingo, 12 de outubro de 2008

As respostas de Bernanos

Duas passagens do Journal d’un Curé de Campagne, de Georges Bernanos, tocam-me de maneira particular. Considero-o um livro excelente e acho difícil pensar em outros que se lhe equiparem em profundidade. Há alguns que adoro, mas que não me trazem muito mais do que um bom divertimento. As duas obras mais famosas de Stendhal, por exemplo, são grandes e sensacionais histórias, embebidas de uma fina psicologia, mas não vão, parece-me, fazer com que um sujeito interrompa a leitura, leve as mãos à cabeça e medite profundamente sobre o sentido de sua existência. Eu já imagino a enxurrada de objeções que poderiam ser feitas a tal argumento, e a maior parte, se feita ao vivo, deixar-me-ia embaraçado e em seguida mudo, porque sou inseguro, desajeitado e não consigo discutir com mais de duas pessoas me inquirindo – neste caso eu simplesmente me resignaria e diria «certo, certo, mudemos de assunto», antes que começasse a gaguejar de nervosismo.

Mas antes que vocês me atrapalhassem com objeções, eu dizia que os dois maiores livros de Stendhal são excelentes, muito bons mesmo, de psicologia refinada – não à toa, Nietzsche o chama de «o último grande psicólogo da França» –, mas não vão muito além de uma ótima diversão. A história é outra com o Journal, ao menos para mim. Eu poderia citar dezenas de trechos para me justificar, mas citarei apenas dois.

Um pensamento muito comum em pessoas pouco simpáticas à religião católica (e eu conheço um monte delas) é o de que, no fundo, católicos são infelizes e querem que você acredite em Deus e tente ser puro apenas para ser infeliz como eles. É como se acusassem você de tentar ser feliz, ao invés de segui-los em sua triste vida. Por isso, considero de uma sensibilidade monumental esta divagação da personagem de Bernanos:

«O erro de muitos padres mais zelosos do que sábios é o de supor a má-fé: vós não credes mais porque a crença vos constrange. Quantos padres eu ouvi falar assim! Não seria mais justo dizer: a pureza não nos é prescrita assim como um castigo, ela é uma das condições misteriosas mas evidentes – a experiência o atesta – deste conhecimento sobrenatural de si mesmo, de si mesmo em Deus, que se chama a fé. A impureza não destrói esse conhecimento, ela acaba com sua necessidade. Não se crê mais, pois não se deseja mais crer. Vós não desejais mais vos conhecer.»

A segunda passagem é de ordem bem mais pessoal. Eu sempre fui tolhido por uma grande insegurança, e é difícil não se deixar enganar por ela às vezes, acreditando se tratar antes de uma forma de humildade. Porque, quando somos inseguros e hesitantes, tendemos a tratar os outros com uma espécie de complacência e nos sentirmos humildes com isso. Eis o que diz a personagem:

«É certo que eu duvidei demais de mim, até aqui. A dúvida de si não é humildade, creio mesmo que ela é por vezes a forma mais exaltada, quase delirante de orgulho, uma sorte de ferocidade invejosa que faz se retornar um infeliz contra ele mesmo, para se devorar. O segredo do inferno deve estar aí.»

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

No qual me revelo um velho ranzinza

Não há nada mais irritante do que um sujeito utilizar minha preocupação e maneiras polidas como ensejo para tentar ser engraçado. Exemplo: um dia desses cheguei na Livraria Cultura, meu local de trabalho há quase dois meses, e o sistema de toda a loja caíra. Eu não podia bater o ponto sem o dito sistema, e, sendo para mim uma situação nova, perguntei a um colega se haveria algum problema em só bater o ponto depois que o sistema voltasse – o que, do ponto de vista do sistema, seria um atraso. Minha pergunta deixava implícita uma outra, a saber, se nesses casos havia um outro procedimento para bater o ponto. Então ele virou, simulou um rosto sério, mordeu os lábios, refletiu por alguns segundos e me disse: «sim, isso é um sério problema, você vai tomar uma advertência». Eu respondi com meu habitual sorriso simpático e condescendente, e mantive o sorriso enquanto ele revelava a arguta brincadeira: «não cara, é brincadeira, não pega nada!». Aí eu me pergunto quantos homicídios não começaram com uma piadinha desprezível.

Em nenhum momento acreditei que meus chefes fossem registrar um atraso naquele dia. Isto, aliás, lembra-me uma cena de A Roda da Fortuna, filme que vi há anos. Os empregados de uma empresa, após permanecerem imóveis e em silêncio por um minuto para homenagear o chefe que morrera, são em seguida avisados de que aquele minuto seria descontado de seus salários.

Dois dias atrás, uma mulher abordou outro colega da livraria e disse em tom educado: «boa tarde, eu reservei um livro com vocês mas não me lembro do nome do rapaz com quem falei». A resposta? «Hmmm, então não há o que fazer», seguida, adivinhem, de uma risada que dava vergonha – porque, francamente, não era engraçado – e o fatídico «brincadeira, não há problema nenhum! É só se dirigir ao setor de reservas!». Se eu fosse a mulher, teria pensado «sim, fora o fato de você ser uma besta, não há mesmo nenhum problema».

Ainda no capítulo das piadas cretinas, acho terrível quando alguém não me conhece e, após ouvir meu pedido educado e respeitoso, simula uma reação de enfado e irritação. Exemplo:
- Oi, você pode me emprestar seu grampeador por dois minutos?
- Ai, que saco! Tá bom vai, dessa vez passa!
É quase certo que, passados alguns minutos, essa pessoa vá dizer algo como «olha, era brincadeira, viu?». O que era brincadeira? O fato de você ser uma débil mental? O exemplo do grampeador também ocorreu comigo. Detalhe: a menina que tentou ser engraçada estava com uma pilha de notas fiscais para grampear e apenas um grampeador.

Tudo bem, tudo bem. Vocês podem achar que eu sou apenas um velho ranzinza e ressentido. É algo a se considerar. Mas ainda creio que o mundo seria um lugar melhor se todos tivessem a compreensão do quão pouco são engraçados e se limitassem a respostas discretas.

segunda-feira, 29 de setembro de 2008

A Revolta

Meu desenvolvimento intelectual até os vinte e três anos pode, grosso modo, ser dividido em três momentos. Desnecessário dizer que a divisão em momentos só é útil para efeito explicativo. É evidente que as coisas são muito mais sutis; as filigranas do desenvolvimento intelectual – conclusões, dúvidas, inquietações – não podem ser traduzidas por uma categoria grosseira como um «momento». Feita a ressalva, prossigo.

No primeiro, convenci-me de que o mal no mundo tinha como causa o capitalismo. Como diz Gustavo Corção, em A Descoberta do Outro, «fiquei convencido, nesse tempo, de que o mundo estava torto, intencionalmente torto, por malícia humana, para benefício exclusivo da detestada classe burguesa. Não havia tragédia nem mistério de iniqüidade, o que havia era trapaça. Um jeito que se lhe desse e o mundo endireitaria.». É verdade que, enquanto fui marxista, nunca soube até que ponto era possível acusar os burgueses por sua suposta maldade, e até que ponto eles eram inocentes, sendo a classe burguesa a única culpada. Todo marxista deve viver um dilema parecido. Porque, lá no fundo, ele quer alguém de carne e osso para culpar; ele quer alguém de quem possa dizer «é tudo culpa dele!». Mas aí ele começa a ler O Capital e, já no prefácio, descobre que «as pessoas só interessam na medida em que representam categorias econômicas, em que simbolizam relações de classe e interesse de classe». O marxista deve, portanto, excluir a responsabilidade do indivíduo por relações das quais não é senão uma criatura. Pra mim, de qualquer forma, o capitalismo era um mal e quem quer que o sustentasse também.

Num segundo momento, por razões várias, abandonei as acusações ao capitalismo e encontrei no cristianismo o responsável pela decadência humana. Não seria apropriado, aqui, afirmar que eu julgasse o homem responsável pelo mal, pelo menos não da maneira como esta afirmação é, de início, compreendida. A própria concepção de «mal», pensava eu, era uma criação de cristãos ressentidos. Nisto eu apenas repetia Nietzsche, para quem, em todos os estados originais da humanidade, «mau» significou o mesmo que «individual», «livre» e «imprevisível»; foi o cristianismo e todo seu ressentimento que denominou o homem forte e livre como mau e imoral. A doutrina cristã, por conseguinte, não era culpada pelo mal em si – porque, para mim, isso não existia –, mas por fazer com que o homem forte se sentisse culpado da própria força.

No terceiro momento, aprofundei meu pessimismo com relação ao homem e intuí que a idéia de «bem» e «mal» não era, assim, simplista como julgava antes. Ademais, seria otimismo em demasia acreditar que as mazelas humanas tinham como causa o capitalismo. A causa deveria, forçosamente, ser muito anterior. Intuí, então, que o homem era inclinado para o mal e toda a Criação era má. Simples assim.

Minha revolta chegou, então, a seu apogeu. Foi aí que me dei conta – e isso me parece hoje de uma obviedade patente – que toda revolta tem uma base comum; toda revolta é, de certa forma, a mesma revolta, diferindo apenas em profundidade. Isso se me tornou evidente com a leitura de Ravachol e os Anarquistas, reunião de documentos e depoimentos de anarquistas franceses organizada por Jean Maitron. De toda a bibliografia anarquista que conheço, esta é a obra mais interessante. Trata-se de um retrato da face mais radical do anarquismo: a chamada «propaganda pela ação», isto é, o terrorismo individual visando o Estado e a burguesia, no final do século XIX e início do XX. Entre os documentos, encontram-se as memórias de Ravachol, a defesa de Emile Henry (condenado por explodir o Café Terminus) e trechos do diário de Garnier. E por que esses documentos são tão interessantes? Porque revelam a revolta em seu grau superlativo. Diferentemente dos anarquistas que permaneceram em sindicatos, «demasiado cobardes para se revoltarem», esses terroristas não reconheceram a ninguém o direito a lhes julgar. Considerando-se oprimidos não só por seus patrões, pelo Estado ou pela burguesia em geral, mas – por que não dizer? – por Deus mesmo, declararam guerra à sociedade e permaneceram criminosos até serem presos ou mortos. Ravachol, Emile Henry e companhia são a realização histórica do único de Max Stirner. Alguns deles seguiram um caminho semelhante ao que afirmei ter feito acima. De início, flertaram com os comunistas; depois, conheceram os anarquistas e entraram em sindicatos; por fim, transbordando de revolta, passaram ao terrorismo – o que, por favor, eu nunca fiz. Creio, porém, que se tivessem vivido um pouco mais compreenderiam o aspecto gnóstico de sua revolta e, quem sabe, arrepender-se-iam e voltariam atrás.

Hoje, sou tentado a enxergar um comunista apenas como um revoltado sem muita profundidade. Já o anarquista, esse foi um pouco além. Quando, porém, o revoltado antevê o caráter metafísico de sua revolta, aí ele se torna um caso mais interessante. Por paradoxal que possa parecer, creio que o aprofundamento da revolta pode ser um caminho para superá-la. Pelo menos o foi para mim. Porque, chegando ao limite de minha revolta e vendo a completa impossibilidade de sustentar aquela posição, decidi fazer o caminho de volta.

domingo, 28 de setembro de 2008

Aviso

Estimo que, após um mês sem escrever neste blog, perdi todos os meus parcos (e preciosos) leitores. Paciência. Se algum restou, porém, asseguro-lhe que a partir de agora o blog será atualizado ao menos quinzenalmente.

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

Vieira no banco dos réus

No último domingo, 25 de agosto, terminei de ler a Vida do Padre Antônio Vieira, de João Francisco Lisboa. O autor, que estimo hoje não muito conhecido, nasceu a março de 1812, em Pirapemas, Maranhão, e morreu em Portugal no ano de 1863. Foi jornalista e político, sendo eleito em 1834 deputado da primeira assembléia da província, cargo que ocupou por três anos e ocuparia mais uma vez em 1848.

A prosa de Lisboa é assustadoramente bela. Havia tempos eu não lia algo tão bem escrito. Na realidade, seu talento como prosador e argumentador me parece o ponto mais alto do livro; donde me permito dizer que, apesar da escrita muito boa e de contar uma história emocionante, a obra peca – e acaba por se comprometer – pelo tom demasiado agressivo com que julga seu objeto. Além disso, a obra foi publicada postumamente, morrendo o autor antes de terminá-la.

Não fui só eu a estranhar o julgamento severo de Lisboa. Em minha atual ânsia pela vida do jesuíta, adquiri também a História de Antônio Vieira, de João Lúcio de Azevedo, da qual ainda não li senão o prefácio. Nele, Azevedo afirma que, embora o livro de Lisboa esteja entre as biografias de Vieira de maior vulto, «peca pela parcialidade», acusando o jesuíta, parece-me, como se acusa um suposto assassino no banco dos réus.

A crítica de Lisboa é implacável. A julgar por ele, as ações de Vieira foram sempre fruto de sua desmesurada ambição e vaidade. Quando parte da Bahia a Portugal, por exemplo, em 1641, diz Lisboa que a reputação de seus triunfos oratórios já «devia medrar a sua inata ambição. A sede de glória e poder que o abrasava, já se não podia aplacar na pequena metrópole de uma colônia; e a imagem grandiosa de Lisboa, sua primeira pátria, e a dos louros que nela colhiam tantos rivais de eloqüência, devia aparecer-lhe incessante, e perturbar-lhe o sono». Tudo bem, Vieira pode estar distante de um santo, mas se percebe na forma como Lisboa o descreve um ódio desmesurado, como se o biógrafo tivesse se colocado a tarefa de revelar no biografado um monstro, qual fosse a realidade dos fatos. Quando não é retratado como um sujeito ambicioso e inclinado à controvérsia e à disputa, Vieira é então um político inepto e infiel a sua pátria, esforçando-se por avassalá-la a jugo estranho, como revelariam suas posições acerca da disputa com a Holanda por Pernambuco, no fim da segunda metade do século XVII.

Uma das únicas virtudes de Vieira reconhecidas por Lisboa é seu desinteresse pela riqueza, virtude que, se louvável, não é citada senão duas vezes ao longo das 395 páginas. «O seu desinteresse em matéria de dinheiros e riquezas», diz o autor, «nunca se desmentiu um só instante, em tantas ocasiões, em que a tentação era tão fácil e natural. Até os proveitos lícitos enjeitava, quando tantos outros em posição muito menos vantajosa, não se descuidariam de enriquecer ilicitamente».
A história de Vieira, entretanto, longe dos rótulos que lhe queiram imputar, é das mais interessantes e, abstraindo-se os exageros do autor, podemos ver quão complexa foi nesta biografia. Chama-me a atenção, por exemplo, sua estreita relação com el-rei D. João IV, que não dissimulava a preferência pela opinião do jesuíta em detrimento da dos conselheiros da coroa. Outra questão peculiar de sua vida, e aí creio serem justificadas as críticas de Lisboa, foi o processo que lhe fez a Inquisição, fruto de suas crenças em cometas e prodígios, bem como de suas interpretações teológicas, digamos, pouco ortodoxas.

A credulidade duvidosa de Vieira aparece em seus escritos, como na Voz de Deus ao Mundo, a Portugal, e à Bahia. «Os cometas, dizia nesse papel, eram vozes de Deus; não haviam sido criados, sim produzidos de novo para anunciarem guerras, revoluções, mudanças e mortes de príncipes. Nunca o houve que não prognosticasse desastres. O salitre com que se eles acendiam no céu eram os pecados». Já no Quinto Império, um de seus papéis mais famosos, Vieira recupera as idéias de Gonçalo Anes Bandarra, «autor de certas trovas, que o povo conceituava de proféticas. Por causa da sua reputação de profeta, e de ele mesmo dar-se por tal, foi preso pelo Santo Ofício, e saiu no auto público da fé, celebrado em Lisboa em 23 de outubro de 1541». O objetivo do Quinto Império, narra Lisboa, «era mostrar que Bandarra fora verdadeiro profeta e que conforme alguns lugares e predições de suas trovas era certo e indubitável que muitos anos ou centos deles antes da última e universal ressurreição dos mortos, havia de ressucitar certo rei de Portugal defunto (era D. João IV) para ser imperador do mundo, e lograr as grandes felicidades, vitórias e triunfos, que o dito Bandarra tinha dele profetizado».

É certo que não vou entrar na discussão dos métodos utilizados pela Inquisição – até por ignorância no assunto. Vendo, porém, as extravagâncias escritas por Vieira, é de se pensar o que outros padres também não escreveram no período, e, por conseguinte, o que seria da doutrina da Igreja sem um órgão responsável por sua conservação. Mas essa é outra discussão.

O que me interessa em tudo isso é ver como a biografia de alguém escapa a qualquer fórmula, rótulo ou redução. Esta Vida do Padre Antônio Vieira, mesmo com a já destacada parcialidade de Lisboa, demonstra a dificuldade de se fazer um julgamento apropriado do jesuíta. Exímio orador, sacerdote próximo do poder real, padre pouco ortodoxo, defensor dos índios, nada disso o esgotará nem será um consenso. De minha parte, após ler esta biografia, continuo-o tendo como personagem incrível e digno de grande admiração, mesmo com toda sua extravagância, ambição e vaidade.

domingo, 10 de agosto de 2008

A resposta de Flannery O'Connor a Max Stirner

I.

Em 1844, sob o pseudônimo de Max Stirner, Johan Caspar Schmidt publicou O Único e a sua Propriedade, livro radical e incendiário que veio se juntar a tantos outros publicados na mesma década, como O Que é a Propriedade? e Filosofia da Miséria, de Pierre-Joseph Proudhon, e A Questão Judaica, de Karl Marx. Embora sejam todos contestadores e radicais, creio não estar em erro ao afirmar que nenhum chegou ao extremo d’O Único.
Stirner fez parte do que se convencionou chamar de «jovens hegelianos» ou «hegelianos de esquerda». Segundo José Bragança de Miranda, no ensaio Stirner, o Passageiro Clandestino da História, O Único teria sido censurado em outubro de 1844 com base no seguinte parecer: «Dado que, em passagens concretas desse escrito, não apenas Deus, Cristo, a Igreja e a religião em geral são objeto da blasfêmia mais despropositada, mas também porque toda a ordem social, o Estado e o governo são definidos como algo que não deveria existir, ao mesmo tempo que se justifica a mentira, o perjúrio, o assassinato e o suicídio, e nega o direito de propriedade». Contudo, alguns dias depois, o mesmo livro tinha sua publicação autorizada, sendo considerado «demasiado absurdo para ser perigoso». Foi publicado por Otto Wigand, responsável pelas mais importantes publicações radicais da época, como os projetos de Ruge e Feuerbach. O Único, livro único de Stirner, permaneceu ignorado até ser «redescoberto» pelo poeta anarquista John Henry Mackay, no fim do século XIX. Segundo Miranda, à redescoberta de Mackay se somou, depois, um novo retorno a Stirner, dessa vez pelos dadaístas, no século XX.
Com a possível exceção do suicídio, a censura certamente acertou em todo o resto. Com efeito, a radicalidade da postura de Stirner só encontra paralelo na obra de Friedrich Nietzsche e sua guerra ao cristianismo. Entre os poucos a reivindicar de alguma forma seu pensamento, estão, curiosamente, os anarquistas, por enxergarem nele a defesa de uma liberdade radical e um antiautoritoritarismo levado às últimas conseqüências
[1]. É um fato curioso na medida em que o próprio Stirner não se dizia anarquista, pelo contrário: O Único escarnece de Proudhon e dos comunistas, considerando-os a continuação e conseqüência do amor cristão e do sacrifício por um princípio universal e estranho.
É justamente a recusa a qualquer princípio superior a chave para a radicalidade de Stirner. Ele não reconhece nada acima do único, nenhuma espécie de idéia transcendental deve oprimi-lo, seja a idéia de Deus, a moral ou os princípios humanistas. Diz ele:
«Um homem não está ‘destinado’ a nada, não tem nenhuma missão particular, nenhuma ‘destinação’, tão pouco como uma planta ou um animal a têm. A flor não obedece à missão de se aperfeiçoar, mas emprega todas as suas forças para gozar e consumir o mundo o melhor que pode, ou seja, absorve tanta seiva da terra, tanto ar da atmosfera, tanta luz do sol quanto pode receber e guardar. O pássaro não vive para obedecer a uma vocação, mas usa as suas forças até onde pode: caça insetos e canta a plenos pulmões. Mas as forças da flor ou do pássaro são mínimas, quando comparadas as do homem. É muito mais poderosa a intervenção do homem no mundo, do que a da flor ou do animal. Também ele não tem nenhuma missão a cumprir, mas tem forças que se manifestam onde quer que estejam, porque o seu ser consiste apenas na sua manifestação e elas não podem permanecer inativas, tal como acontece com a vida, que, se 'parasse' por um segundo que fosse, deixaria de ser vida. (...). Cada um usa a sua força sem que veja nisso uma missão sua: cada um usa em cada momento toda força que possui.»

O trecho acima dá pouca margem à dúvida. Ao não reconhecer nada acima do homem e assumi-lo como um animal, do qual se diferencia apenas por ter maior poder, Stirner toma como lastro e fundamento de todas as relações a força. Nesta perspectiva, força é manifestação de força, sendo qualquer limitação da própria força uma fraqueza – ausência de força –, pois que se houvesse força ela se manifestaria
[2]. Sua radicalidade, incrivelmente semelhante à de Nietzsche – ainda que tenha escrito seu livro no ano de nascimento do autor d’O Anticristo, bem antes dele, portanto –, condena a religião e sua moral a uma expressão de fraqueza.
Se, diz Stirner, «não há ovelha, não há cão que se preocupem em ser ‘uma ovelha ou um cão como devem ser’», pois, para o animal, sua essência não é um conceito a se realizar – ele se realiza vivendo –, o mesmo deveria valer para o homem. «A vossa natureza é humana», diz ele, «vós sois naturezas humanas, ou seja, homens. Mas precisamente porque já o sois, não precisais de vos transformar nisso».
Nem bons nem maus, apenas fortes e fracos, essa é a ótica desesperadora para a qual nos inclina Stirner. Atribuir o valor «bom» a um homem seria, neste sentido, apenas uma questão utilitária ou um reflexo de fraqueza: digo que alguém é bom se isso me for de alguma utilidade ou se ele me for inofensivo, isto é, fraco como eu – exatamente como colocará depois Nietzsche em Genealogia da Moral. Estado, moral, religião, nada diz respeito ao único; tudo isso lhe é estranho e, mesmo, perigoso. Donde Stirner conclui: «É certo que de modo nenhum se pode viver tranqüilo entre os maus, porque nunca estamos seguros da nossa vida; mas será que a vida entre os homens morais é mais fácil? Também aí a nossa vida não está segura, a diferença é que somos enforcados ‘por via legal’.». Trata-se de uma perspectiva que não pode ser desmentida de todo.


II.

Seria interessante, entretanto, contrapor a postura radical apresentada no livro de Stirner à de A Gente Boa da Roça, um dos contos que compõe a coletânea É Difícil Encontrar um Homem Bom, da escritora americana e católica Flannery O’Connor. A despeito de os dois textos serem temporal e espacialmente muito distantes – O Único foi publicado em Leipzig, no fim da segunda metade do século XIX; o conto de O’Connor escrito no sul dos Estados Unidos, em 1955 –, forçoso é reconhecer que o referido conto fornece, de alguma forma, uma boa resposta à postura stirneriana.
Mary Flannery O’Connor nasceu em 1925, em Savannah, Georgia, filha única de pais católicos e descendentes de imigrantes irlandeses. Formou-se em Sociologia e Inglês, em 1945, e depois cursou o programa de criação literária da Universidade do Estado de Iowa. Em A Gente Boa da Roça, O’Connor nos apresenta a senhora Hopewell e sua filha Felícia (Joy no original), de trinta e dois anos, loura, avantajada e dona de uma perna mecânica que usava desde seus dez anos. Enquanto a mãe, incapaz de entender grosserias gratuitas e sempre hospitaleira, repete chavões como «nada é perfeito», «assim é a vida» e «as pessoas têm cada uma seu modo de ver», a filha – cuja indignação permanente oblitera qualquer expressão facial – é atéia, dona de um Ph.D. em Filosofia e revela, nos poucos momentos que fala, um ceticismo de não pouca agressividade.
Felícia parece não sentir mais que desprezo ao ouvir a mãe enaltecendo a gente boa da roça. «A mãe», narra O’Connor, «achava que a cada ano a filha se parecia menos com os outros seres humanos e mais consigo mesma: inchada, grosseira e com olhos apertados e maldosos». Divorciada, a senhora Hopewell sente a necessidade de conversar com alguém sobre sua fazenda, mas, ao pressionar Felícia, recebe apenas observações negativas e uma fisionomia sisuda. Satisfaz-se, então, com a senhora Freeman, a caseira. Qual a senhora Hopewell e sua filha, a senhora Freeman também ajuda a compor o quadro bizarro revelado pelo conto. Tinha ela, diz o narrador, «um interesse especial por detalhes a respeito de infecções misteriosas, deformidades, crueldade com crianças etc. No que tange a doenças, preferia as que se estendiam por longos períodos e as incuráveis».
Tudo muda quando Manley Pointer, um jovem alto, magro, de terno azul brilhante e portando uma maleta preta bate à porta para lhes vender bíblias. A senhora Hopewell o atende de má vontade, pois o almoço estava quase pronto; como, porém, era incapaz de grosserias, convida-o para almoçar. «Felícia», diz O’Connor, «olhou rapidamente para ele no momento em que foram apresentados e, durante toda a refeição, não voltou a dirigir-lhe o olhar». Após o almoço, entretanto, em vez de lhe dar o mais puro desprezo, como a narrativa nos faz esperar, Felícia caminha com o jovem até o portão e os dois trocam algumas palavras, não reveladas ao leitor nem à senhora Hopewell. Descobrimos, pouco depois, que os dois haviam combinado de se encontrar no dia seguinte para um piquenique.
Felícia e Manley Pointer encontram-se no portão às dez horas; o rapaz ainda está com sua maleta preta. Eles atravessam o pasto e, ao alcançarem a orla da mata, Pointer coloca a mão na cintura de Felícia, agarra-a e beija-a. Os dois caminham até um velho celeiro onde ficava estocado o feno e sobem até o sótão.
Após mais alguns beijos, o rapaz lhe diz que a ama e pergunta se ela também o amava. «Você ainda num me disse que me ama», prossegue ele, «você tem que dizer que me ama». Felícia o olha, com um misto de pena e carinho, como se aquele pedido de amor fosse sinal patente de ingenuidade, e lhe diz, abraçando-o: «É até bom que você não entenda. Estamos todos condenados, mas alguns entre nós retiraram as vendas dos olhos e viram que não há nada para ver. Não deixa de ser um tipo de salvação».
Felícia enfim diz que o ama. Isso, porém, não satisfaz Pointer, que pede, então, que ela prove seu amor e lhe mostre onde começa sua perna de pau; tratava-se de revelar sua parte mais íntima. «Ninguém tocava na perna», narra O’Connor, «a não ser ela própria. Cuidava da perna como certas pessoas cuidam da alma, na maior privacidade, quase que com os próprios olhos virados para o lado». Felícia nega, Pointer resmunga e dá a entender que nesse caso ela não o ama de verdade.
Desenrola-se, então, o momento capital. Ao receber de Pointer um olhar profundo e penetrante e ouvir dele que a perna mecânica a tornava diferente de todo mundo, algo muda em Felícia.
«Ela o encarou, agora sentada. Nada em seu rosto ou em seus olhos azuis, redondos e gelados, indicava que tais palavras a tivessem comovido; mas ela sentiu como se o coração tivesse parado e saído de sua mente para bombear-lhe o sangue. Chegou à conclusão de que pela primeira vez na vida estava diante de verdadeira inocência. Esse rapazola, com um instinto que vinha da além-sabedoria, chegara à verdade a respeito dela. Quando, ao cabo de um minuto, ela disse com voz rouca, alto e bom som, ‘está bem’, foi como se se rendesse a ele incondicionalmente. Foi como se houvesse perdido e reencontrado a própria vida, milagrosamente na vida dele».

Malgrado o ceticismo e a profunda convicção de que é mais lúcida do que o rapaz simples e sem instrução, Felícia acaba desarmada por seu olhar sincero e profundo. É nesse momento que, pasmem, descobre estar diante não da gente boa da roça, gente por quem, ademais, não tinha senão desprezo, mas de um grande vigarista. Felícia deixara que o rapaz retirasse sua perna mecânica e, ao pedir para que ela seja recolocada, Pointer manda-a esperar, puxa sua maleta e dela retira uma Bíblia oca. De dentro dela pega uma garrafa de uísque, um baralho com figuras eróticas e um pacote de preservativos. E então, a garota atéia, lúcida e doutora em Filosofia murmura, quase sem voz: «você não é da boa gente da roça?». Pois Pointer não apenas não era, como tampouco era um cristão – nem nunca tinha sido. «Num vai você agora pensar que eu acredito nessa bosta!», indigna-se ele; «Eu vendo Bíblias, mas num sou louco nem nasci ontem e sei muito bem pra onde vou!». Por fim, Pointer rouba-lhe a perna mecânica e diz ao se despedir: «você num é tão sabida assim. Eu nunca acreditei em nada, desde que nasci!», numa alusão ao ceticismo orgulhoso dela. Desarmada, à mercê daquele homem, todo o menoscabo de Felícia pela good country people se esvai, ou melhor, perde seu sentido. Ela estava diante de alguém igualmente cético, mas que apenas tirara de seu ceticismo outras conclusões.
A partir dessa narrativa pode-se, pois, inverter a afirmação de Stirner, sem dúvida detentora de alguma verdade. Não, nossa vida não é fácil nem segura, seja entre os homens morais, seja entre a gente boa da roça – e acaso o é com algum tipo de homem? Entretanto, quando nos rendemos incondicionalmente a alguém, podemos no máximo rezar para que se trate de um homem bom, por mais difíceis de se encontrar que sejam.


Bibliografia

MACKAY, John Henry. "O Único e a sua Propriedade" in Verve, número 10, 2006.
MIRANDA, José A. Bragança de. "Stirner, o Passageiro Clandestino da História" in STIRNER, Max. O Único e a sua Propriedade. Tradução de João Barrento. Lisboa, Editora Antígona, 2004.
O'CONNOR, Flannery. É Difícil Encontrar um Homem Bom. Tradução de José Roberto O’Shea. São Paulo, Editora Arx, 2003.
O’CONNOR, Flannery. Sangue Sábio. Tradução de José Roberto O’Shea. São Paulo, Editora Arx, 2002.
STIRNER, Max. O Único e a sua Propriedade. Tradução de João Barrento. Lisboa, Editora Antígona, 2004.


[1] Mesmo assim, nem todos o vêem com simpatia. Anarquistas americanos como Noam Chomsky e Murray Bookchin, por exemplo, desprezam Stirner e seu «anarco-individualismo».

[2] Ainda que seja esta a conclusão evidente do trecho citado, Stirner ressalta pouco depois: «Como as forças são sempre autonomamente ativas, a ordem de as usar seria desnecessária e absurda. Usar as suas forças não é uma missão nem uma tarefa do homem, mas uma ação sempre real e sempre presente. Força é apenas a forma simplificada de manifestação da força.»

sábado, 26 de julho de 2008

Cioran levado a sério


Tendo morado alguns meses em Paris, conheci muitos estrangeiros fascinados pela obra do romeno E. M. Cioran – nada posso dizer dos franceses, não porque não sofram do mesmo fascínio, mas porque não conheci muitos. Eu mesmo assumo ter tido sempre admiração por Cioran. Vendo, contudo, o efeito inebriante que seus livros provocavam, e percebendo de que maneira sua leitura afetava a conduta dos leitores meus amigos, pensei, cá com meus botões, que se trata de um exagero. Suas idéias não podem ser levadas tão a sério, e, se o são, é apenas na medida em que os leitores as desconhecem.
Para um ceticismo que não avalia a fundo suas implicações, é muito engraçado – e apenas engraçado – ler frases como «Bem aventurados aqueles que, tendo nascido antes da ciência, morriam tão logo chegava a primeira doença», ou «nem todo mundo tem a sorte de morrer jovem». Não digo que não seja engraçado, mas, como dito acima, não é algo que se possa levar a sério. Se isto não é evidente como de fato deveria ser, basta uma leitura de suas entrevistas, publicadas pela editora Gallimard, para não haver mais dúvidas.
Não obstante o fato de o autor dessas frases nunca ter se matado, conseqüência lógica de quem as considera seriamente, ele confessa em entrevista a Helga Perz ter tido sempre uma paixão pela existência: «Se bem que eu tenha da vida uma concepção sombria, tive sempre uma grande paixão pela existência. Uma paixão tão grande que ela se inverteu em uma negação da vida, porque eu não tinha os meios de satisfazer o meu apetite pela vida.». Ora, o que seria essa confissão senão o drama de quase todos os homens?
É, todavia, em entrevista a Fritz Raddatz, publicada em 1986 no hebdomadário alemão Die Zeit, que toda a incoerência da postura de Cioran se revela de maneira patente. Mas justiça se lhe faça: é um exagero falar aqui de incoerência, visto que o próprio Cioran não faz questão de esconder a impossibilidade de se tirar uma «postura» de sua obra, ou por outra, ele não esconde que sua vida mesma se encontra na mais profunda contradição com o que escreveu. Ele o diz a quase todos os entrevistadores, mas é Raddatz quem explícita essa contradição ao extremo.

F.R.: Podemos verdadeiramente e de uma maneira geral negar todo o processo histórico e negar o progresso no interior de um tal processo?
C.: Eu não posso negar isso. Mas para mim tudo que é ganho é ao mesmo tempo uma perda. E assim o progresso anula a si próprio. Cada vez que o homem dá um passo adiante ele perde alguma coisa.

F.R.: Você me daria um exemplo?
C.: Pegue a ciência, os medicamentos, as técnicas médicas, as máquinas para se prolongar a vida. Eu diria: os homens outrora morriam de sua própria morte, era seu destino, eles morriam sem cuidados. Hoje graças aos medicamentos o homem leva uma vida falsa, uma vida artificialmente prolongada. Ele não vive mais seu destino.

F.R.: Mas, senhor Cioran, você me pareceu bem feliz e aliviado quando me falava havia pouco do resultado de seus exames radioscópicos. Para isso foi necessário que Röntgen fizesse um dia sua descoberta. Não era um progresso?
C.: Mas seria melhor que eu morresse de minha própria morte.

F.R.: Mas você também foge dela.
C.: É verdade, eu faço parte do todo, desta loucura. Não posso fazer de outra forma. Eu também pego metrô. Eu faço tudo o que fazem os outros.

(...)

F.R.: Diante de uma representação tão sinistra do homem e da história, somos tentados a te perguntar: por quê você publica finalmente? Por quê fazê-lo? Para quem?
C.: você tem toda a razão de fazer essa objeção. Eu sou um exemplo do que eu descrevo. Eu não sou uma exceção, ao contrário. Sou cheio de contradições. Eu sou incapaz de sabedoria, e no entanto tenho um grande desejo de sabedoria.

F.R.: Mas você disse uma vez: «Aquele que é sábio não produz mais». Não ser sábio é a fonte do produzir.
C.: É absolutamente o que eu penso. Mas ninguém deve me seguir.

F.R.: Ninguém deve te seguir?
C.: Se alguém me segue, pior para ele. Tudo aquilo que eu escrevi são estados, estados de alma ou de espírito, se podemos dizer assim. Em todo caso, eu escrevi para me livrar, me livrar de alguma coisa. Por conseguinte, eu considero tudo que escrevi não como uma teoria, mas como uma verdadeira cura a meu próprio uso. A posição de meus livros vem de que eu não posso escrever senão em um certo estado. Eu escrevo em vez de me bater...

quinta-feira, 24 de julho de 2008

Emma Bovary e a vida religiosa

Le plus médiocre libertin a révê des sultanes; chaque notaire porte en soi les débris d’un poète.

Flaubert, Madame Bovary.


Não vejo como Madame Bovary, de Flaubert, possa ter sofrido tentativa de censura com base em «ofensas à religião», como de fato o foi no início de 1857. Considerada em seu conjunto, a obra é muito mais uma apologia da vida religiosa do que o contrário. Um casamento com um homem medíocre, uma vida burguesa insípida, uma vila onde tudo permanece como está, o olhar melancólico de Emma Bovary para tudo o que lhe cerca faz com que ela devaneie com «verdadeiros» amores, vidas intensas e adultérios. É forçoso reconhecer que, de seu ponto de vista, a maior parte das vidas – seja na metade do século XIX, seja atualmente – se enquadraria nesse quadro que compõe a sua própria. Autrement dit, a insatisfação de Emma não provém de sua própria vida: a grande maioria das outras – para não dizer todas – a deixaria igualmente insatisfeita. A obra não fornece poucas passagens que confirmem este argumento.
Emma não é diferente das outras pessoas. Como ela, todas querem ser felizes. Em algum grau, todas acreditam em algum momento que ao se casar de novo encontrarão a verdadeira felicidade, que se vivessem uma vida intensa ao invés da vida supostamente medíocre que têm de aguentar seriam muito mais satisfeitas. Todos nos descontentamos e imaginamos vidas melhores e, em algum grau, fazemos besteiras iludidos pela felicidade, que parece dar um passo a cada passo que damos para alcançá-la. A personagem de Flaubert apenas deu mais passos do que a maior parte de nós.
Por isso mesmo, ela resta como um ótimo exemplo. Todos pensamos em fazer o que ela fez e, bem, podemos ao menos ver o que lhe acontece no final: infelicidade atroz, dívidas e suicídio.