sábado, 26 de julho de 2008

Cioran levado a sério


Tendo morado alguns meses em Paris, conheci muitos estrangeiros fascinados pela obra do romeno E. M. Cioran – nada posso dizer dos franceses, não porque não sofram do mesmo fascínio, mas porque não conheci muitos. Eu mesmo assumo ter tido sempre admiração por Cioran. Vendo, contudo, o efeito inebriante que seus livros provocavam, e percebendo de que maneira sua leitura afetava a conduta dos leitores meus amigos, pensei, cá com meus botões, que se trata de um exagero. Suas idéias não podem ser levadas tão a sério, e, se o são, é apenas na medida em que os leitores as desconhecem.
Para um ceticismo que não avalia a fundo suas implicações, é muito engraçado – e apenas engraçado – ler frases como «Bem aventurados aqueles que, tendo nascido antes da ciência, morriam tão logo chegava a primeira doença», ou «nem todo mundo tem a sorte de morrer jovem». Não digo que não seja engraçado, mas, como dito acima, não é algo que se possa levar a sério. Se isto não é evidente como de fato deveria ser, basta uma leitura de suas entrevistas, publicadas pela editora Gallimard, para não haver mais dúvidas.
Não obstante o fato de o autor dessas frases nunca ter se matado, conseqüência lógica de quem as considera seriamente, ele confessa em entrevista a Helga Perz ter tido sempre uma paixão pela existência: «Se bem que eu tenha da vida uma concepção sombria, tive sempre uma grande paixão pela existência. Uma paixão tão grande que ela se inverteu em uma negação da vida, porque eu não tinha os meios de satisfazer o meu apetite pela vida.». Ora, o que seria essa confissão senão o drama de quase todos os homens?
É, todavia, em entrevista a Fritz Raddatz, publicada em 1986 no hebdomadário alemão Die Zeit, que toda a incoerência da postura de Cioran se revela de maneira patente. Mas justiça se lhe faça: é um exagero falar aqui de incoerência, visto que o próprio Cioran não faz questão de esconder a impossibilidade de se tirar uma «postura» de sua obra, ou por outra, ele não esconde que sua vida mesma se encontra na mais profunda contradição com o que escreveu. Ele o diz a quase todos os entrevistadores, mas é Raddatz quem explícita essa contradição ao extremo.

F.R.: Podemos verdadeiramente e de uma maneira geral negar todo o processo histórico e negar o progresso no interior de um tal processo?
C.: Eu não posso negar isso. Mas para mim tudo que é ganho é ao mesmo tempo uma perda. E assim o progresso anula a si próprio. Cada vez que o homem dá um passo adiante ele perde alguma coisa.

F.R.: Você me daria um exemplo?
C.: Pegue a ciência, os medicamentos, as técnicas médicas, as máquinas para se prolongar a vida. Eu diria: os homens outrora morriam de sua própria morte, era seu destino, eles morriam sem cuidados. Hoje graças aos medicamentos o homem leva uma vida falsa, uma vida artificialmente prolongada. Ele não vive mais seu destino.

F.R.: Mas, senhor Cioran, você me pareceu bem feliz e aliviado quando me falava havia pouco do resultado de seus exames radioscópicos. Para isso foi necessário que Röntgen fizesse um dia sua descoberta. Não era um progresso?
C.: Mas seria melhor que eu morresse de minha própria morte.

F.R.: Mas você também foge dela.
C.: É verdade, eu faço parte do todo, desta loucura. Não posso fazer de outra forma. Eu também pego metrô. Eu faço tudo o que fazem os outros.

(...)

F.R.: Diante de uma representação tão sinistra do homem e da história, somos tentados a te perguntar: por quê você publica finalmente? Por quê fazê-lo? Para quem?
C.: você tem toda a razão de fazer essa objeção. Eu sou um exemplo do que eu descrevo. Eu não sou uma exceção, ao contrário. Sou cheio de contradições. Eu sou incapaz de sabedoria, e no entanto tenho um grande desejo de sabedoria.

F.R.: Mas você disse uma vez: «Aquele que é sábio não produz mais». Não ser sábio é a fonte do produzir.
C.: É absolutamente o que eu penso. Mas ninguém deve me seguir.

F.R.: Ninguém deve te seguir?
C.: Se alguém me segue, pior para ele. Tudo aquilo que eu escrevi são estados, estados de alma ou de espírito, se podemos dizer assim. Em todo caso, eu escrevi para me livrar, me livrar de alguma coisa. Por conseguinte, eu considero tudo que escrevi não como uma teoria, mas como uma verdadeira cura a meu próprio uso. A posição de meus livros vem de que eu não posso escrever senão em um certo estado. Eu escrevo em vez de me bater...

quinta-feira, 24 de julho de 2008

Emma Bovary e a vida religiosa

Le plus médiocre libertin a révê des sultanes; chaque notaire porte en soi les débris d’un poète.

Flaubert, Madame Bovary.


Não vejo como Madame Bovary, de Flaubert, possa ter sofrido tentativa de censura com base em «ofensas à religião», como de fato o foi no início de 1857. Considerada em seu conjunto, a obra é muito mais uma apologia da vida religiosa do que o contrário. Um casamento com um homem medíocre, uma vida burguesa insípida, uma vila onde tudo permanece como está, o olhar melancólico de Emma Bovary para tudo o que lhe cerca faz com que ela devaneie com «verdadeiros» amores, vidas intensas e adultérios. É forçoso reconhecer que, de seu ponto de vista, a maior parte das vidas – seja na metade do século XIX, seja atualmente – se enquadraria nesse quadro que compõe a sua própria. Autrement dit, a insatisfação de Emma não provém de sua própria vida: a grande maioria das outras – para não dizer todas – a deixaria igualmente insatisfeita. A obra não fornece poucas passagens que confirmem este argumento.
Emma não é diferente das outras pessoas. Como ela, todas querem ser felizes. Em algum grau, todas acreditam em algum momento que ao se casar de novo encontrarão a verdadeira felicidade, que se vivessem uma vida intensa ao invés da vida supostamente medíocre que têm de aguentar seriam muito mais satisfeitas. Todos nos descontentamos e imaginamos vidas melhores e, em algum grau, fazemos besteiras iludidos pela felicidade, que parece dar um passo a cada passo que damos para alcançá-la. A personagem de Flaubert apenas deu mais passos do que a maior parte de nós.
Por isso mesmo, ela resta como um ótimo exemplo. Todos pensamos em fazer o que ela fez e, bem, podemos ao menos ver o que lhe acontece no final: infelicidade atroz, dívidas e suicídio.