quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Sobre o ressentimento

Em um dos inumeráveis e monótonos protestos ocorridos na PUC-SP, lembro-me de ter visto uma faixa pendurada com o aviso: «Burguês, nós nos veremos na Revolução!», ou algo que o valha, possivelmente com algum erro de concordância. Na hora, pensei em como o militante autor daquela asneira era idiota. Idiota e ressentido. Desgostava-me em particular a idéia de que o sujeito, a despeito de ser um imbecil, ainda precisasse projetar para o futuro seu acerto de contas com a burguesia. Minha crítica de então era, grosso modo, a mesma que os nietzschianos fazem ao cristianismo. Aquele militante era idiota porque era fraco, e, incapaz de dar vazão a sua raiva, dizia ao objeto de seu impulso (e a si mesmo) que um dia a justiça seria feita – isto é, os burgueses como eu, minha mãe e você seriam fuzilados.

Mas será esse o mesmo sentimento que anima o cristão a pensar no juízo final? Serão cristãos e comunistas igualmente fracos e ressentidos? É certo que muitas pessoas, ao se perceberem incapazes de se vingar aqui, neste mundo, projetam seu acerto de contas para o outro. Quem nunca se encontrou fraco e impotente diante de uma agressão e desejou que Deus, no momento de julgar uns e outros, fizesse justiça e castigasse o agressor? Nada há de mais humano. Em sua Legenda Áurea, o dominicano Jacopo narra o seguinte episódio da vida de São Tomé:
«Mas ele [o santo] não comia nem bebia e mantinha os olhos constantemente voltados para o Céu, o que desagradou um serviçal da corte, que esbofeteou o apóstolo de Deus. Este então disse: ‘É melhor para você ser punido na terra com um castigo passageiro e ser futuramente perdoado. Eu não me levantarei enquanto a mão que me bateu não for trazida até aqui por cães’. Ora, quando aquele serviçal foi buscar água na fonte, um leão estrangulou-o e bebeu seu sangue. Cães dilaceraram seu cadáver e um deles, preto, levou a mão direita até o local do banquete».

Tanto Jacopo como Agostinho questionam a autenticidade do relato. Ademais, se o fato realmente ocorreu, dizem, não deve ser interpretado como vingança, mas como predição. Em outras palavras, se o relato é autêntico, então São Tomé não desejou vingança contra o serviçal, mas previu o que lhe aconteceria e pensou que, no fim das contas, melhor era ao serviçal ser castigado em vida do que pagar depois.

Autêntico ou não, penso que tal relato deve fazer os pouco simpáticos ao cristianismo exultarem de satisfação. É, para eles, mais uma prova do ressentimento cristão. Não há, crêem eles, nenhuma justiça divina, e quem não acerta as contas neste mundo, bem, não o faz porque não consegue, porque é fraco e ressentido – e, nesse caso, precisa projetar o fim de sua frustração para o outro mundo.

Creio, porém, que o cristão está mais imune ao ressentimento do que comunistas, nietzschianos e ateus em geral. (Eu estava prestes a escrever que é muito fácil mostrar como os cristãos são menos ressentidos do que os outros, e que eu poderia dar uma dezena de razões, mas que daria apenas uma, pois isso tudo é óbvio. Na verdade, porém, meu distúrbio de déficit de atenção está quase me fazendo tremer e eu quero acabar logo esse textinho, então vou dar apenas uma razão, não porque tudo isso seja óbvio e eu queira afetar um ar de superioridade, mas apenas porque eu quero fumar um cigarro no quintal e pensar em outra coisa.)

Meditemos alguns instantes nalgumas famosas palavras do Evangelho: «Ouvistes que foi dito: Olho por olho e dente por dente. Eu, porém, vos digo: não resistais ao homem mau». Se assumimos que não há transcendência, nem Deus e tampouco justiça divina, então nossa resposta perante aquele que nos dá um tabefe na face direita será devolver o tabefe. Ocorre que somos todos fracos, e, se somos mais fortes que alguns – aos quais podemos devolver o tabefe –, é inevitável que nos deparemos com alguém mais forte e voltemos a ser, como quase sempre, fracos, de modo que ou (1) tentaremos devolver o tabefe e receberemos muitos outros ou (2) nos resignaremos. A conseqüência de qualquer uma das duas situações será o ressentimento.

Entretanto, diferentemente do comunista, do nietzschiano e de outros ateus, o cristão tem fé, isto é, tem esperança. Para citar Bento XVI em sua última carta encíclica, «uma esperança fiável, em virtude da qual podemos afrontar nosso presente: o presente, mesmo um presente penoso, pode ser vivido e aceito se ele conduz a um término e se nós podemos estar seguros desse término, se esse término é tão grande que ele pode justificar os esforços do caminho». É claro que um sujeito que só consegue aceitar um tapa na face se puder pensar em como seu agressor sofrerá no inferno não é lá muito cristão. Ele está a mercê do mais reles ressentimento, bem como os ateus. Se, ao contrário, ele pensar em sua agressão como um episódio de seu presente, por vezes penoso, mas cujo término é certo, grande e justifica seus esforços, não precisará se apoiar em delírios de vingança, pois que há algo maior a esperá-lo. Esse término tem necessariamente que ser em outro mundo (eu, pessoalmente, acho mais fácil acreditar na vida eterna e nos milagres bíblicos do que na «emancipação humana»).

Para o ateu, só há o ressentimento nesta vida e a não-existência depois dela. O cristão, por outro lado, tem a esperança de que, ao tentar imitar nosso Senhor, será recompensado depois desta vida. É mais do que óbvio que essa imitação é duríssima. No mais, é forçoso dizer que a idéia de não resistir ao homem mal provoca não poucos mal-entendidos. Chestov, em Les Commencements et les Fins, afirma: «On ne peut le nier, la doctrine de la non-résistance au mal est de tout ce que nous lisons dans l’Evangile ce qu’il y a de plus terrible et en même temps ce qu’il y a de plus irrationnel et de plus énigmatique. Tout notre être raisonnable se cabre à la pensée que le malfaiteur garde la pleine liberté matérielle d’accomplir ses forfaits. Comment permettre à un brigand de tuer sous tes yeux un enfant innocent sans dégaîner ton épée?» Ora, o exemplo de Chestov não é apenas um mal-entendido, é um crime (não falo do assassinato da criança inocente, o que é evidente, mas de assisti-lo sem nada fazer). Ter paciência com aquele que nos faz um mal e até mesmo perdoá-lo é algo muito diferente de não resistir ao mal no mundo.