terça-feira, 17 de março de 2009

Os meninos mimados

Em A Rebelião das Massas, Ortega y Gasset trata do fato homônimo que é, para ele, o mais importante na vida pública européia de então (1930). Enquanto fato psicológico, massa é, segundo o autor, «todo aquele que não se valoriza a si mesmo – como bem ou como mal – por razões especiais, mas que se sente ‘como toda a gente’ e, no entanto, não fica angustiado, sente-se à vontade ao sentir-se idêntico aos outros». Autrement dit, se o homem que compõe uma minoria seleta é aquele que exige mais de si que os outros, ainda que não logre cumprir na sua pessoa essas exigências, o homem-massa, por outro lado, não exige de si nada de especial, pois para ele viver é ser em cada instante o que já é, sem esforço de perfeição. A rebelião das massas não é senão o advento desse tipo de homem ao pleno poderio social.


O século XIX pariu o homem-massa. Que aspectos apresenta a sua vida? De início, uma facilidade material incrível. Diz o autor: «O homem médio de qualquer classe social encontrava o seu horizonte econômico mais alargado de dia para dia. Cada dia acrescentava um luxo novo ao repertório do seu standard vital. Cada dia a sua posição era mais segura e independente do arbítrio alheio. O que antes se teria considerado um benefício da sorte que inspirava humilde gratidão ao destino, tornou-se um direito que não se agradece, mas se exige. (...). A essa facilidade e segurança econômica acrescentem-se as físicas: o comfort e a ordem pública. A vida corre sobre cômodos carris, e não há verossimilhança de que intervenha nela algo de violento e perigoso.».


A vida se apresentou a esse homem como que isenta de impedimentos. Mesmo a vida pública não lhe oferece limitações. Todos os homens são legalmente iguais. Esse cenário, concebido pelo século XIX, possui três princípios fundadores: democracia liberal, experimentação científica e industrialismo, os dois últimos podendo se resumir à técnica.


O mundo que rodeia o homem-massa não lhe limita em nenhum sentido, não lhe põe contenção alguma, pelo contrário, atiça seu apetite e lhe faz crer que tudo será ainda melhor no futuro. O mundo de fins do século XIX e início do XX não tem só perfeição e amplitude, mas sugere a seus habitantes enorme segurança sobre seu futuro: amanhã o mundo será ainda mais rico e mais amplo. O homem-massa, ao se deparar com este mundo tão perfeito e ao pensar que amanhã ele será ainda melhor, imagina que a própria natureza o produziu, ignorando todos os esforços pressupostos à sua criação. E como isso se reflete na psicologia do homem-massa? Ortega y Gasset aponta dois traços: a livre expansão dos seus desejos vitais e a ingratidão radical pelo que tornou possível a sua fácil existência. Esta é, diz o autor, a psicologia do menino mimado.


Pergunto então aos meus já fatigados botões: o que faz com que tantos jovens de classe média vociferem contra a Igreja no recente episódio de Alagoinha? A maior parte nem mesmo é católica. Estariam eles tão seguros de que um feto não é um ser humano? Saberiam eles dos reais riscos que a menina de 9 anos corria devido à gravidez? Meus botões, é certo, consideram minhas perguntas indiscretas e sem qualquer cabimento, não vendo nenhuma relação entre a psicologia que motiva esses jovens e aquela própria ao homem-massa. E tem mais, dizem-me meus botões, os jovens que vociferam contra a posição da Igreja não são meninos mimados, a despeito do que eu queira insinuar. Que fique muito claro, dizem eles, não há qualquer relação entre um menino mimado e um jovem que enxerga num par de fetos um presente incômodo, a que se pode aceitar ou rejeitar, como lhe convier.