O abolicionismo penal se baseia, em boa medida, nas idéias do inglês William Godwin (1756-1836). Em 1793, Godwin concluiu An Inquiry Concerning Political Justice and Its Influence on Moral and Happiness, obra cujo capítulo VII se detém demoradamente no problema da punição. São três os fins aos quais a punição se destina, diz ele: (i) a contenção, (ii) a reforma e (iii) o exemplo. O que segue abaixo é, primeiro, uma exposição concisa dos três fins da punição e suas respectivas críticas; em seguida, um comentário sobre os três e a conclusão de que só a crítica a um deles tem sentido.
(i) A contenção parte da premissa de que um indivíduo que cometeu um mal deverá, com mais chances que os outros, cometer outro mal no futuro. Se não estamos de acordo com tal afirmação, ou se, ao menos, não cremos que um indivíduo infrator esteja mais inclinado a cometer uma infração do que qualquer outro, então a punição com vistas à contenção deixa de fazer sentido.
No que se refere (ii) à reforma, é preciso acreditar, para nela crer, que a coerção empregada contra um indivíduo pode ser uma boa maneira de ensinar-lhe que cometeu um equívoco. Note-se que a punição com vistas à reforma é aplicada ao infrator mesmo que sua consciência não concorde com o fato de que o que fez foi uma infração. A coerção, diz Godwin, «não pode convencer, não pode conciliar, mas, ao contrário, aliena a mente daquele contra quem é empregada. A coerção não tem nada em comum com a razão e portanto não pode ter nenhuma propensão a cultivar a virtude. (...). Pode a injustiça ser o melhor modo de disseminar princípios de igualdade e razão?». Se cometi uma ofensa a alguém, devo ser punido mesmo que, do meu ponto de vista, não tenha cometido ofensa alguma? E acaso tal punição me inclinará mais a compreender que cometi uma ofensa (supondo que o tenha sido)?
Por último, o terceiro dos fins da punição é (iii) o exemplo, passível de receber todas as objeções levantadas contra a contenção e a reforma. Aí estão, grosso modo, as críticas de Godwin aos fins da punição. Ora, há aí algumas questões importantes, sobretudo em relação à punição como reforma do indivíduo. Por ser a reforma o fim punitivo mais complicado, e por ser também uma das bases do terceiro fim (o exemplo), é melhor tratarmos, em primeiro lugar, da punição como contenção.
O argumento de Godwin contra a punição como contenção é, pois, bastante frágil. Tal não é o caso, porém, daquele contra a punição como reforma. De fato, a idéia de usar a violência como meio para educar um indivíduo é no mínimo questionável. No mais das vezes, a violência alimenta o rancor do indivíduo infrator e não o torna mais capaz de assumir seus erros do que antes. Se fui ofendido por alguém, decerto não o convencerei de que tal ato me foi uma ofensa dando-lhe um soco na cara – pelo contrário, apenas alimentarei a espiral do ressentimento. Por conseguinte, deveríamos, diante de uma infração, apenas aguardar o arrependimento do infrator, sem constrangê-lo ou coagi-lo de forma alguma. Certo?
Se acreditamos haver condutas certas e erradas, e acreditamos que os homens podem agir segundo uma ou outra, então também acreditamos ter os homens ao menos um pouquinho de liberdade. Se admitimos isto, podemos também falar em responsabilidade, noção fundamental para pensarmos a punição. Se somos responsáveis e sabemos termos ofendido alguém, buscaremos, em princípio, reparar esta ofensa – e, neste caso, pode-se dizer que nos punimos consciente e voluntariamente.
É preciso dizer que a consideração exposta até aqui – a relação entre moral, liberdade e responsabilidade – pode sofrer objeções. Uma delas, pouco discernível de uma provocação, merece algum exame. Em Crepúsculo dos Ídolos, Nietzsche diz o seguinte: «Onde quer que responsabilidades sejam buscadas, costuma ser o instinto de querer julgar e punir que aí busca. O vir-a-ser é despojado de sua inocência, quando se faz remontar esse ou aquele modo de ser à vontade, a intenções, a atos de responsabilidade: a doutrina da vontade foi essencialmente inventada com o objetivo da punição, isto é, de querer achar culpado. Toda a velha psicologia, a psicologia da vontade, tem seu pressuposto no fato de que seus autores, os sacerdotes à frente das velhas comunidades, quiseram criar para si o direito de impor castigos ― ou criar para Deus esse direito...».
Eu poderia objetar que Nietzsche é contraditório e que ele mesmo afirma, noutro livro, cousa muito contrária ao trecho acima. Basta ver em Além do Bem e do Mal, §262, sua afirmação de que a moral aristocrática – sua preferida e oposta à moral dos fracos, isto é, cristã – é intolerante nas leis penais. Mas creio que seu argumento tem algum sentido, sobretudo se trocarmos os termos «punir» e «castigo» por vingança. Neste caso, de fato, poderíamos dizer que o instinto de vingança (ou o ressentimento) atua muitas vezes por trás da busca por responsabilidades. E a vingança não pode, por certo, servir como base à punição.
Aqui chegamos a uma questão fundamental: vingança e punição são a mesma coisa? Respondo que não. Se puníssemos alguém movidos por vingança, o argumento de Godwin contra a punição como reforma seria válido. Entretanto, pode-se muito bem presenciar a prática de um ato mal e, em seguida, punir o autor daquele ato, sem desejo de vingança. Talvez o sujeito punido ache que agimos movidos pela vingança. E, talvez, não tenhamos como lhe provar o contrário. Saberemos, porém, que agimos unicamente com vistas à correção de um mal, ainda que a prova para tanto reste apenas em nossa consciência.