Permitam-me esclarecer um aspecto do post anterior, que, escrito com certo açodamento, não saiu de todo correto. É evidente que, sendo o fenômeno do patriarcalismo circunscrito a determinado período da história brasileira, os autores cujas vidas acompanharam seu declínio o terão como tema natural para suas obras. Isto quer dizer que, se aqueles que viveram o fim da sociedade patriarcal no Brasil resolvem escrever sobre tal fim, trata-se de algo tão compreensível que não é nem mesmo digno de nota. Ninguém estranharia um judeu que vivesse o Holocausto e escrevesse sobre ele, etc. etc.
Porém, não era este o fenômeno que desejava assinalar. No tocante a algumas instituições da história brasileira, a impressão que se tem é a de que elas nasceram fétidas, arrastaram-se por décadas num estado de decomposição e, por fim, extinguiram-se. Não há, nessas instituições, nada de louvável ou glorioso. A nenhum homem que delas tenha participado pode ser dado, parece-me, o adjetivo de virtuoso. Naquele Brasil patriarcal, coronelista, de monocultura escravocrata e latifundiária, nunca teria havido um spoudaios sequer.
Tudo isto veio-me à mente enquanto lia Fogo Morto, que, em minha visão de então, era mais um belo exemplar de literatura sobre a decadência brasileira - no caso, da decadência do patriarcalismo e dos engenhos.
Entretanto, ao olhar a obra com mais atenção, logo vi se tratar de caso distinto. Não de todo, mas um pouquinho. É o primeiro livro que leio de José Lins do Rego, mas, a julgar por esta obra apenas, o autor se encontra um pouco distante da literatura da decadência, assim como Gilberto Freyre está distante da sociologia da decadência.
Os engenhos de Lins do Rego não são de todo desprezíveis. Pelo contrário. Na segunda parte de Fogo Morto, somos introduzidos ao engenho Santa Fé. É decerto um engenho decadente. Porém, nos tempos do coronel Tomás Cabral de Melo, era admirável. O próprio coronel, aliás, era figura que impunha respeito. Entre outras coisas, isso se devia ao fato de ser um bom trabalhador, e de não ligar para os preconceitos bocós dos outros senhores. Assim, por exemplo, o coronel Tomás ia, ele próprio, com seus comboios de açúcar até a cidade, onde venderia a mercadoria. Tal atitude escandalizava a todos. «Como era que um senhor de engenho se dava a uma posição daquela, sair acompanhando os cargueiros, como se fosse um feitor, um qualquer?».
É claro, o engenho Santa Fé tinha escravos. Mas eles não apanhavam como nos engenhos vizinhos. «Negro que apanhava só tivera um, o Luís, que bebia muito e ficava impossível, malcriado, querendo dar nos outros». Percebem? O Santa Fé parece um engenho decente. Havia escravidão, preconceito, patriarcalismo, mas isso, hypocrite lecteur, isso havia em todo o resto. O Santa Fé era um engenho digno. Tomás Cabral de Melo era um coronel digno. Trabalhava tanto ou mais que seus escravos. Não era um camumbembe qualquer.
As personagens de Fogo Morto não são completamente boçais. Dá até pra ver traços de virtude nalgumas delas, que só não se destacam mais devido ao orgulho desmedido que impera por todo lado. Enfim, tudo isto é para dizer que, se no referido romance não vemos um engenho de portento, governado por um coronel virtuoso, ao menos vemos algo próximo, o que dá a entender que isso seria possível. Não é, pois, mais um livro a tratar as instituições brasileiras como lodaçais de vícios e opressão, donde nada de bom poderia surgir.