Sendo estudante da pós-graduação da USP, imagino o que aconteceria se, nos corredores de minha faculdade, algum desconhecido me interpelasse a respeito da recente «crise» na universidade. Alguém que desconheça o início da «crise», mas que, de repente, seja informado sobre todas as manifestações do movimento estudantil ocorridas desde o dia 27 de outubro, certamente pensará que foram necessários atos muito vis para provocar tamanha indignação. «Como assim?», perguntará o sujeito a seus botões. Estudantes se revoltaram contra a polícia militar? Ocuparam o prédio da Administração da FFLCH? Ocuparam o prédio da reitoria? Os estudantes declararam greve geral? Fizeram piquetes na entrada do prédio da Letras e, depois, retiraram as cadeiras das salas do prédio de Ciências Sociais e Filosofia? Mobilizaram-se em assembléias com mais de 2 mil alunos? Divulgaram abaixo-assinados a veículos de imprensa? Exigem que a polícia militar saia imediatamente do campus? Exigem a saída do reitor da universidade? Adiaram as eleições do DCE para o ano que vem?
O indivíduo que desconhece o que se passa na USP, e acaba de ser informado a respeito das mobilizações estudantis, certamente pensará que algo de muito grave aconteceu. Protestos tão inflamados não podem surgir sem uma causa significativa. Curioso, esse indivíduo aventará algumas possibilidades. Talvez a PM tenha agido de modo arbitrário e truculento, como lhe é comum, causando assim a indignação dos estudantes. Talvez o reitor tenha tomado alguma medida polêmica, flagrantemente contrária ao estatuto da universidade. Talvez haja grupos fascistas de extrema-direita perseguindo minorias dentro do campus. Talvez as três coisas juntas.
Imagino qual seria a reação desse indivíduo se eu lhe dissesse que nada disso aconteceu. «Ah, como assim?», dirá, exaltando-se. «Você está querendo me dizer que todos esses protestos enfurecidos estão ocorrendo sem nenhuma causa?» Não exatamente. Não iria tão longe a ponto de negar o princípio de causalidade. É evidente que, se esses protestos ocorrem, têm alguma causa. O que quero dizer é simplesmente que a causa não pode ser apreendida a partir dos protestos, e que, a despeito das ações do movimento estudantil sucedidas desde o dia 27 de outubro, nem a PM, nem o reitor violaram os direitos ou liberdades básicas de quem quer que fosse. A PM cometeu uma ilegalidade, qual seja, a não identificação dos policiais no momento da desocupação. Quanto aos grupos fascistas, se existem, são uma reação às ações extremadas do movimento estudantil, e não o contrário (basta ver isso aqui). «Ora, então você está afirmando que os estudantes começaram protestos radicais sem razão para fazê-lo?» Sim, é o que estou afirmando.
É preciso fazer três esclarecimentos. Em primeiro lugar, (1) os principais responsáveis pelos atos ilegítimos de ocupação dos dois prédios, piquetes, cadeiraços e atos afins são estudantes radicais ligados a partidos extremistas. Esses estudantes não representam a maioria dos estudantes da USP. Possivelmente, não representam nem suas famílias. Em segundo lugar, (2) a afirmação de que as referidas manifestações radicais do movimento estudantil são «ilegítimas» não implica em uma condenação a toda e qualquer manifestação radical. Não estou, portanto, dizendo que a contestação fora dos limites institucionais seja, por si só, ilegítima (devo este esclarecimento ao Lucas e Renato). Pelo contrário, em muitos casos ela é fundamental. Em uma democracia, diversos direitos são adquiridos graças à luta de movimentos atuando no limiar da lei. No entanto, as manifestações que se sucederam a partir do dia 27 de outubro, notadamente as ocupações, os piquetes e o cadeiraço, são, sob quaisquer pontos de vista, ilegítimas. São atos autoritários, que atentam contra os direitos de outrem e não são apoiados nem pela maioria dos estudantes, nem pela instituição que, supostamente, representa-os, o DCE. Além de tudo isso, suas reivindicações são vagas e mudam constantemente.
Em terceiro lugar, (3) embora seja difícil julgar a conduta da polícia militar, afirmo que, desde o dia 27 de outubro até hoje, ela agiu de modo não-condenável, o que é diferente de dizer que a PM agiu de modo «irrepreensível» ou «totalmente aprovável». No dia da desocupação da reitoria, os policiais militares da tropa de choque não estavam identificados. Trata-se de uma infração à lei, que exige que os policiais atuem identificados. Além dessa infração, é possível que, desde o dia 27 de outubro, a PM tenha cometido outras. Talvez, sei lá, algum policial tenha xingado um estudante. Mas, convenhamos, nada remotamente próximo ao que a radicalidade das manifestações estudantis levaria a crer. A polícia militar não violou a integridade física de ninguém, nem no dia 27, quando enfrentou manifestantes após autuar três jovens fumando maconha, nem no dia da desocupação. E a prova disso está nos testemunhos do movimento estudantil, cuja ojeriza à polícia militar é notória. Pois bem, mesmo com todo esse asco, mesmo com toda a vontade de denunciar abusos da PM, não houve nada a ser denunciado. Nada, a não ser a falta de identificação dos policiais durante a desocupação e o fato de terem sido lançadas duas bombas de gás próximas ao CRUSP. Nenhuma violência minimamente comparável àquelas perpetradas pelo movimento estudantil.
E não é só isso. As reivindicações da minoria estudantil radicalizada, sobretudo as que exigem o fim do convênio entre a USP e a PM, a que exige o fim de todos os processos administrativos contra estudantes, e a que pede a renúncia do reitor João Grandino Rodas, carecem de fundamento. Não estou afirmando que sejam reivindicações absurdas (embora, sim, pareçam-me absurdas), mas apenas que, até agora, nenhum dos representantes da minoria radicalizada foi capaz de argumentar consistentemente a favor delas.
É possível que alguns leitores permaneçam incrédulos diante do que estão lendo neste texto. «Como assim? As ações do movimento estudantil se explicam porque o reitor Rodas é um fascista! Ele agiu de modo unilateral e ignorou os canais pelos quais a comunidade acadêmica pode participar das decisões da instituição!» De fato, esta é uma das principais alegações dos estudantes que apóiam os atos extremistas (vejam, por exemplo, esta Nota Pública). Mas teria ela fundamentos? Seria o reitor um fascista?
No fim de 2009, o então governador José Serra deveria escolher um candidato da lista tríplice eleita pela comunidade da USP para ser o reitor da universidade. Ressalte-se, que, desde o fim da ditadura militar, os governadores têm escolhido sempre o primeiro da lista eleita pela comunidade, ou seja, o nome por ela preferido. E o que Serra fez? Ele escolheu Rodas, o segundo da lista. Seria este ato ilegítimo? Não, ao menos do ponto de vista legal. O governador tem a prerrogativa de escolher qualquer um dos três nomes da lista tríplice. Não tenho nenhuma simpatia por Rodas, mas não é nada evidente que sua escolha seja ilegítima, muito menos o são as razões pelas quais ele deveria renunciar.
Mas os estudantes que defendem os atos radicais e extremos ainda poderiam afirmar que não foi propriamente a eleição de Rodas, e sim sua forma de governar que o torna um reitor ilegítimo. Sobre este ponto, não vou me estender muito, pois acho que uma pequena reflexão é suficiente. Por mais desgosto que nos causem as ações do reitor, elas são tão ou menos arbitrárias do que aquelas realizadas pelo movimento estudantil. Quer dizer, qual é a legitimidade das ações do movimento estudantil? O fato de que elas são debatidas