Direitos nem sempre são defendidos nos limites da lei. Se não por outros exemplos, um exame sobre a aquisição de direitos no Brasil ao longo do século XX é suficiente para tornar tal afirmação compreensível. Que manifestações políticas tenham de, por vezes, exceder os limites institucionais em regimes antidemocráticos, é algo que se pode compreender facilmente. A história brasileira oferece exemplos bastante claros, como o Estado Novo de Getúlio Vargas, entre 1937 e 1945, e a ditadura militar de 1964 até a metade da década de 1980. Nesses dois casos, a defesa de direitos civis básicos necessariamente ultrapassava as margens – naqueles casos, arbitrárias – da lei.
No entanto, é fato digno de nota – embora, talvez, menos evidente – que a defesa de direitos básicos pode exceder os limites institucionais também
Ao extrapolar os limites institucionais, movimentos pela defesa de direitos precisam justificar a legitimidade de suas ações a partir de um fundamento moral. Os movimentos políticos devem agir segundo preceitos aos quais se acredita que os outros cidadãos possam razoavelmente aceitar. Do contrário, nenhum diálogo seria possível. Ainda que contrárias à lei, certas ações podem ser aceitas se, além de razoáveis e moralmente justificadas, respeitarem aquilo que John Rawls chamou de o «dever de civilidade».
Desde o dia 27 de outubro, quando três estudantes foram enquadrados pela polícia militar por fumarem maconha, a USP foi palco de manifestações radicais. Entre elas, são dignas de nota a ocupação do prédio da Administração da FFLCH; a ocupação do prédio da Reitoria da universidade; a declaração de uma greve geral dos estudantes; o uso de piquetes e «cadeiraços» – retirar as cadeiras das salas de aula – para fazer valer a greve, ainda que ela não fosse apoiada por todos os estudantes; e o adiamento das eleições do DCE para o ano que vem.
Ainda que o movimento estudantil da USP goze de algum apoio dentro da universidade, é patente que a quase totalidade dos estudantes não apoiou os atos acima. Via de regra, o apoio ao movimento estudantil se dá apesar de suas ações extremadas, e não por causa delas. É possível reconhecer a insatisfação de muitos estudantes, seja com a estrutura participativa da universidade, seja com a atuação da PM dentro da USP e fora dela. Porém, em que pese a dificuldade de julgar a ação de movimentos radicais que ultrapassam os limites da lei, e em que pese a insatisfação estudantil acima referida, os estudantes – como, de resto, toda a comunidade universitária – não reconhecem como legítimos os atos extremados do movimento estudantil. Piquetes, «cadeiraços» e ocupações não são apenas ilegais, mas violam também o dever de civilidade, não podendo, pois, ser justificados aos demais cidadãos brasileiros.
Este ano está começando e os ânimos estão arrefecidos. O movimento estudantil uspiano, porém, promete dar continuidade às manifestações logo no início do ano letivo. Se as férias de janeiro não forem suficientes para dar tranqüilidade às divergências na universidade, corre-se o risco de que o clima de civilidade reinante seja substituído pelo medo e por ações ainda mais radicais do que as já ocorridas. Como conseqüência, tal resultado não apenas levaria a mais agressões, senão também colocaria em risco a excelência acadêmica da USP, notadamente a de sua Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, onde os protestos costumam ser mais extremados, sendo, portanto, a faculdade que mais sofre com o clima de radicalização.
Esta não é uma manifestação para que o movimento estudantil da USP deixe de cumprir seu papel. É, pelo contrário, um pedido para que os estudantes da USP defendam suas posições, de modo radical, se for necessário; mas que, sobretudo, defendam também a civilidade na universidade. Se a tolerância, o respeito, a cortesia; se, numa palavra, a civilidade for perdida, então os estudantes perderão as salvaguardas de que suas posições podem ser ouvidas. Se a civilidade for perdida, os estudantes da USP se verão naquela infeliz situação dos sofredores descrita por John Locke, à qual, por não terem mais a quem apelar, terão apenas, como único remédio, ‘apelar aos céus’.
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