quarta-feira, 27 de agosto de 2008

Vieira no banco dos réus

No último domingo, 25 de agosto, terminei de ler a Vida do Padre Antônio Vieira, de João Francisco Lisboa. O autor, que estimo hoje não muito conhecido, nasceu a março de 1812, em Pirapemas, Maranhão, e morreu em Portugal no ano de 1863. Foi jornalista e político, sendo eleito em 1834 deputado da primeira assembléia da província, cargo que ocupou por três anos e ocuparia mais uma vez em 1848.

A prosa de Lisboa é assustadoramente bela. Havia tempos eu não lia algo tão bem escrito. Na realidade, seu talento como prosador e argumentador me parece o ponto mais alto do livro; donde me permito dizer que, apesar da escrita muito boa e de contar uma história emocionante, a obra peca – e acaba por se comprometer – pelo tom demasiado agressivo com que julga seu objeto. Além disso, a obra foi publicada postumamente, morrendo o autor antes de terminá-la.

Não fui só eu a estranhar o julgamento severo de Lisboa. Em minha atual ânsia pela vida do jesuíta, adquiri também a História de Antônio Vieira, de João Lúcio de Azevedo, da qual ainda não li senão o prefácio. Nele, Azevedo afirma que, embora o livro de Lisboa esteja entre as biografias de Vieira de maior vulto, «peca pela parcialidade», acusando o jesuíta, parece-me, como se acusa um suposto assassino no banco dos réus.

A crítica de Lisboa é implacável. A julgar por ele, as ações de Vieira foram sempre fruto de sua desmesurada ambição e vaidade. Quando parte da Bahia a Portugal, por exemplo, em 1641, diz Lisboa que a reputação de seus triunfos oratórios já «devia medrar a sua inata ambição. A sede de glória e poder que o abrasava, já se não podia aplacar na pequena metrópole de uma colônia; e a imagem grandiosa de Lisboa, sua primeira pátria, e a dos louros que nela colhiam tantos rivais de eloqüência, devia aparecer-lhe incessante, e perturbar-lhe o sono». Tudo bem, Vieira pode estar distante de um santo, mas se percebe na forma como Lisboa o descreve um ódio desmesurado, como se o biógrafo tivesse se colocado a tarefa de revelar no biografado um monstro, qual fosse a realidade dos fatos. Quando não é retratado como um sujeito ambicioso e inclinado à controvérsia e à disputa, Vieira é então um político inepto e infiel a sua pátria, esforçando-se por avassalá-la a jugo estranho, como revelariam suas posições acerca da disputa com a Holanda por Pernambuco, no fim da segunda metade do século XVII.

Uma das únicas virtudes de Vieira reconhecidas por Lisboa é seu desinteresse pela riqueza, virtude que, se louvável, não é citada senão duas vezes ao longo das 395 páginas. «O seu desinteresse em matéria de dinheiros e riquezas», diz o autor, «nunca se desmentiu um só instante, em tantas ocasiões, em que a tentação era tão fácil e natural. Até os proveitos lícitos enjeitava, quando tantos outros em posição muito menos vantajosa, não se descuidariam de enriquecer ilicitamente».
A história de Vieira, entretanto, longe dos rótulos que lhe queiram imputar, é das mais interessantes e, abstraindo-se os exageros do autor, podemos ver quão complexa foi nesta biografia. Chama-me a atenção, por exemplo, sua estreita relação com el-rei D. João IV, que não dissimulava a preferência pela opinião do jesuíta em detrimento da dos conselheiros da coroa. Outra questão peculiar de sua vida, e aí creio serem justificadas as críticas de Lisboa, foi o processo que lhe fez a Inquisição, fruto de suas crenças em cometas e prodígios, bem como de suas interpretações teológicas, digamos, pouco ortodoxas.

A credulidade duvidosa de Vieira aparece em seus escritos, como na Voz de Deus ao Mundo, a Portugal, e à Bahia. «Os cometas, dizia nesse papel, eram vozes de Deus; não haviam sido criados, sim produzidos de novo para anunciarem guerras, revoluções, mudanças e mortes de príncipes. Nunca o houve que não prognosticasse desastres. O salitre com que se eles acendiam no céu eram os pecados». Já no Quinto Império, um de seus papéis mais famosos, Vieira recupera as idéias de Gonçalo Anes Bandarra, «autor de certas trovas, que o povo conceituava de proféticas. Por causa da sua reputação de profeta, e de ele mesmo dar-se por tal, foi preso pelo Santo Ofício, e saiu no auto público da fé, celebrado em Lisboa em 23 de outubro de 1541». O objetivo do Quinto Império, narra Lisboa, «era mostrar que Bandarra fora verdadeiro profeta e que conforme alguns lugares e predições de suas trovas era certo e indubitável que muitos anos ou centos deles antes da última e universal ressurreição dos mortos, havia de ressucitar certo rei de Portugal defunto (era D. João IV) para ser imperador do mundo, e lograr as grandes felicidades, vitórias e triunfos, que o dito Bandarra tinha dele profetizado».

É certo que não vou entrar na discussão dos métodos utilizados pela Inquisição – até por ignorância no assunto. Vendo, porém, as extravagâncias escritas por Vieira, é de se pensar o que outros padres também não escreveram no período, e, por conseguinte, o que seria da doutrina da Igreja sem um órgão responsável por sua conservação. Mas essa é outra discussão.

O que me interessa em tudo isso é ver como a biografia de alguém escapa a qualquer fórmula, rótulo ou redução. Esta Vida do Padre Antônio Vieira, mesmo com a já destacada parcialidade de Lisboa, demonstra a dificuldade de se fazer um julgamento apropriado do jesuíta. Exímio orador, sacerdote próximo do poder real, padre pouco ortodoxo, defensor dos índios, nada disso o esgotará nem será um consenso. De minha parte, após ler esta biografia, continuo-o tendo como personagem incrível e digno de grande admiração, mesmo com toda sua extravagância, ambição e vaidade.

Um comentário:

Julio disse...

Bah, que post. Nem parece que estou lendo um blog :)