quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Godwin e a punição


Na última semana, fiz com meu pai uma matéria para o Psi, jornal do Conselho Regional de Psicologia. Ela tratava do aumento mundial da população carcerária e citava a opinião de representantes de correntes críticas ao sistema penal. Uma dessas correntes, defendida por alguns poucos acadêmicos, juristas e seus entourages, é a do abolicionismo penal. Trata-se de uma crítica não apenas ao sistema penal, mas à própria noção de punição. O assunto é interessante e, posto não tenha mais que fazer, decidi dedicar-lhe algumas linhas.

O abolicionismo penal se baseia, em boa medida, nas idéias do inglês William Godwin (1756-1836). Em 1793, Godwin concluiu An Inquiry Concerning Political Justice and Its Influence on Moral and Happiness, obra cujo capítulo VII se detém demoradamente no problema da punição. São três os fins aos quais a punição se destina, diz ele: (i) a contenção, (ii) a reforma e (iii) o exemplo. O que segue abaixo é, primeiro, uma exposição concisa dos três fins da punição e suas respectivas críticas; em seguida, um comentário sobre os três e a conclusão de que só a crítica a um deles tem sentido.

(i) A contenção parte da premissa de que um indivíduo que cometeu um mal deverá, com mais chances que os outros, cometer outro mal no futuro. Se não estamos de acordo com tal afirmação, ou se, ao menos, não cremos que um indivíduo infrator esteja mais inclinado a cometer uma infração do que qualquer outro, então a punição com vistas à contenção deixa de fazer sentido.

No que se refere (ii) à reforma, é preciso acreditar, para nela crer, que a coerção empregada contra um indivíduo pode ser uma boa maneira de ensinar-lhe que cometeu um equívoco. Note-se que a punição com vistas à reforma é aplicada ao infrator mesmo que sua consciência não concorde com o fato de que o que fez foi uma infração. A coerção, diz Godwin, «não pode convencer, não pode conciliar, mas, ao contrário, aliena a mente daquele contra quem é empregada. A coerção não tem nada em comum com a razão e portanto não pode ter nenhuma propensão a cultivar a virtude. (...). Pode a injustiça ser o melhor modo de disseminar princípios de igualdade e razão?». Se cometi uma ofensa a alguém, devo ser punido mesmo que, do meu ponto de vista, não tenha cometido ofensa alguma? E acaso tal punição me inclinará mais a compreender que cometi uma ofensa (supondo que o tenha sido)?

Por último, o terceiro dos fins da punição é (iii) o exemplo, passível de receber todas as objeções levantadas contra a contenção e a reforma. Aí estão, grosso modo, as críticas de Godwin aos fins da punição. Ora, há aí algumas questões importantes, sobretudo em relação à punição como reforma do indivíduo. Por ser a reforma o fim punitivo mais complicado, e por ser também uma das bases do terceiro fim (o exemplo), é melhor tratarmos, em primeiro lugar, da punição como contenção.

Antes, porém, um esclarecimento. Não sei se a crítica de Godwin se dirige apenas ao sistema penal ou se é dirigida também à prática cotidiana da punição. De todo modo, o que me interessa aqui é justamente a prática cotidiana, isto é, a «psicologia» da punição. Admitamos, então, que estamos a falar não da punição do Estado, mas da punição nas relações humanas em geral. Admitamos também que falamos de homens e não de crianças; a discussão sobre educação infantil tornaria este post muito mais longo do que já é.

Embora gaste boas páginas para se justificar, a objeção de Godwin à contenção é bastante precária. Sua premissa é a de que de um indivíduo que pecou não se pode esperar outro pecado mais do que se pode esperá-lo de qualquer outro indivíduo. A única sustentação possível a tal raciocínio é a de um ceticismo radical. É como dizer: «o sol nasceu e se pôs durante todos os dias de minha existência, mas nada me garante que ele nascerá amanhã». Sim, é verdade. Mas, se você tivesse que apostar a vida da sua mãe, apostaria que o sol vai nascer amanhã, correto?

Disso não se depreende que um indivíduo que cometeu uma infração vá forçosamente cometê-la de novo. É até possível que ele carregue um coração contrito e, em verdade, esteja menos propenso a cometer de novo aquela infração do que qualquer um de nós a cometê-la pela primeira vez. De todo modo, nossa experiência nos diz que, se Fulano furta uma maçã na feira todo dia, é mais provável ver ele furtar de novo do que ver Beltrano, que nunca roubou uma maçã, fazê-lo pela primeira vez.

O argumento de Godwin contra a punição como contenção é, pois, bastante frágil. Tal não é o caso, porém, daquele contra a punição como reforma. De fato, a idéia de usar a violência como meio para educar um indivíduo é no mínimo questionável. No mais das vezes, a violência alimenta o rancor do indivíduo infrator e não o torna mais capaz de assumir seus erros do que antes. Se fui ofendido por alguém, decerto não o convencerei de que tal ato me foi uma ofensa dando-lhe um soco na cara – pelo contrário, apenas alimentarei a espiral do ressentimento. Por conseguinte, deveríamos, diante de uma infração, apenas aguardar o arrependimento do infrator, sem constrangê-lo ou coagi-lo de forma alguma. Certo?

Antes de responder à pergunta acima, duas séries de considerações podem ser feitas. (1) Em primeiro lugar, Godwin possui uma visão por demais otimista do homem. Seus argumentos pressupõem um homem maduro, racional e pouco inclinado ao mal. Esta visão não se sustenta. Basta vermos o quanto caímos nos mesmos erros, como sustentamos os vícios que tentamos combater, e, por fim, como somos vaidosos, acreditando que os erros dos outros são mais graves que os nossos – isso, é claro, para aqueles que tentam seguir uma conduta correta; muita gente nem mesmo reflete sobre as conseqüências últimas de sua conduta, e se afunda nos vícios como uma criança se afundaria numa piscina de chocolate.

(2) Em segundo lugar, para haver punição é preciso haver lei, seja ela natural, revelada ou o que for. Em outras palavras, a punição só faz sentido se acreditamos haver condutas certas e condutas erradas. Se eu creio ser a moral totalmente subjetiva e inapreensível pelos homens, então qualquer conduta que eu considere errada será errada para mim. Logo, meu esforço por corrigir a conduta de outros homens não será senão um esforço para exercer minha vontade sobre eles.

Se acreditamos haver condutas certas e erradas, e acreditamos que os homens podem agir segundo uma ou outra, então também acreditamos ter os homens ao menos um pouquinho de liberdade. Se admitimos isto, podemos também falar em responsabilidade, noção fundamental para pensarmos a punição. Se somos responsáveis e sabemos termos ofendido alguém, buscaremos, em princípio, reparar esta ofensa – e, neste caso, pode-se dizer que nos punimos consciente e voluntariamente.

É preciso dizer que a consideração exposta até aqui – a relação entre moral, liberdade e responsabilidade – pode sofrer objeções. Uma delas, pouco discernível de uma provocação, merece algum exame. Em Crepúsculo dos Ídolos, Nietzsche diz o seguinte: «Onde quer que responsabilidades sejam buscadas, costuma ser o instinto de querer julgar e punir que aí busca. O vir-a-ser é despojado de sua inocência, quando se faz remontar esse ou aquele modo de ser à vontade, a intenções, a atos de responsabilidade: a doutrina da vontade foi essencialmente inventada com o objetivo da punição, isto é, de querer achar culpado. Toda a velha psicologia, a psicologia da vontade, tem seu pressuposto no fato de que seus autores, os sacerdotes à frente das velhas comunidades, quiseram criar para si o direito de impor castigos ― ou criar para Deus esse direito...».

Eu poderia objetar que Nietzsche é contraditório e que ele mesmo afirma, noutro livro, cousa muito contrária ao trecho acima. Basta ver em Além do Bem e do Mal, §262, sua afirmação de que a moral aristocrática – sua preferida e oposta à moral dos fracos, isto é, cristã – é intolerante nas leis penais. Mas creio que seu argumento tem algum sentido, sobretudo se trocarmos os termos «punir» e «castigo» por vingança. Neste caso, de fato, poderíamos dizer que o instinto de vingança (ou o ressentimento) atua muitas vezes por trás da busca por responsabilidades. E a vingança não pode, por certo, servir como base à punição.

Aqui chegamos a uma questão fundamental: vingança e punição são a mesma coisa? Respondo que não. Se puníssemos alguém movidos por vingança, o argumento de Godwin contra a punição como reforma seria válido. Entretanto, pode-se muito bem presenciar a prática de um ato mal e, em seguida, punir o autor daquele ato, sem desejo de vingança. Talvez o sujeito punido ache que agimos movidos pela vingança. E, talvez, não tenhamos como lhe provar o contrário. Saberemos, porém, que agimos unicamente com vistas à correção de um mal, ainda que a prova para tanto reste apenas em nossa consciência.

A despeito da antropologia equivocada de Godwin, podemos, pois, concordar com ele e afirmar que a violência não é um meio adequado para a educação. Isso significa que, sempre que possível, deveríamos deixar o infrator refletir e se arrepender sem coerções, no máximo sinalizando a ele que, para nós, ele cometeu uma infração. É claro que, às vezes, «sinalizar» não será o bastante, e teremos que falar alto, gritar-lhe ou algo pior. É por isso que não podemos nos furtar de dizer: sempre que possível.

Por fim, no que se refere à crítica de Godwin à punição como exemplo, trata-se de um equívoco baseado em sua compreensão do homem. Conforme dito, Godwin vê o homem como um ser inclinado ao bem. Isto é de um absurdo patente. Deixe os homens livres de punições por suas condutas erradas e a sociedade entrará em convulsão. Ainda bem que, mesmo não havendo punições externas, haverá sempre a consciência a lhes dizer que erraram. O homem é um ser inclinado ao mal, mas é capaz de se arrepender.

Seria oportuno lembrar aqui da Epístola aos Romanos. Diz São Paulo: «Com efeito, a cólera de Deus se revela do alto do céu contra toda impiedade e toda injustiça dos homens que mantêm a verdade cativa da injustiça; pois o que se pode conhecer de Deus é para eles manifesto: Deus lho manifestou... eles são pois inescusáveis, visto que, conhecendo a Deus, não lhe renderam nem a glória, nem a ação de graças que são devidas a Deus; pelo contrário, eles se transviaram em seus vãos raciocínios e o seu coração insensato se tornou presa das trevas» (Rm 1, 18-21). E então o que lhes aconteceu? Diz São Paulo: «Por isso Deus os entregou, pela concupiscência dos seus corações, à impureza na qual eles mesmos aviltam os próprios corpos» (Rm 1, 24). Sim, é isso mesmo. Deus os entregou a seus vícios e os deixou continuar a pecar. E essa é uma terrível manifestação da cólera divina, de vez que deixa os homens destruírem seu laço com Deus e, logo, afasta-os da liberdade.

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