quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Pequena divagação sobre as críticas ao petismo

Não reivindico para o que escrevo a seguir qualquer mérito por originalidade ou perspicácia. É apenas um pensamento que me ocorre e que, em essência, é o seguinte: a maior parte das críticas tucanas ao petismo é frágil e tem como pressuposto uma compreensão larga de democracia. Senão, vejamos.

Suponho que um bom exemplar de manifestação tucana crítica ao petismo seja o texto de Sérgio Fausto, publicado na Folha de S. Paulo em 26-09-10 e intitulado «A outra face do lulo-petismo». Basicamente, trata-se de uma crítica a um artigo de André Singer, «A História e seus ardis». Segundo Fausto, o artigo de Singer ignora as mudanças introduzidas pelo lulo-petismo nas relações entre Estado, governo e sociedade, mudanças que podem ser duradouras e, diz ele, «são preocupantes para quem acredita que a democracia não se limita a eleições».

A crítica de Fausto não é muito clara, mas parece se dirigir à cooptação de setores da sociedade por parte do governo, bem como de setores do governo por parte do PT. A seguir, transcrevo duas passagens bastante expressivas:

«Na combinação do Bolsa Família com o Bolsa BNDES, Singer enxerga o ressurgimento da 'aliança entre a burguesia nacional e o povo, relíquia de tempos passados que ninguém mais achava que pudesse funcionar'. Nenhuma palavra sobre o que pode vir a significar para a democracia brasileira a formação de duas clientelas governamentais, uma no andar de cima, com recursos para financiar campanhas, outra no andar de baixo, com votos para eleger.»

E a segunda:

«A crítica ao modo pelo qual este [o lulo-petismo] se constitui e opera a partir do Estado não é 'moralismo udenista' tardio, como Singer sugere. É, isto, sim, um dever de consciência de quem acredita que a democracia se enfraquece e pode periclitar onde o chefe do Estado se arvora a protetor paternal dos pobres, onde as fronteiras entre partido, governo e Estado se confundem, onde a cooptação estatal prevalece sobre a representação mais autônoma dos interesses da sociedade.»

Notem que, embora a segunda passagem seja interessante, ela não nos dá, a rigor, nada de palpável, isto é, nenhuma evidência de que as fronteiras entre partido, governo e Estado estejam se confundindo. Mesmo a primeira passagem, que faz referência à criação de clientelas por parte do governo, uma no andar de cima e outra no andar de baixo, não denuncia, a rigor, nada que pareça muito condenável.

Não tenho qualquer intenção de desqualificar o artigo de Fausto, que acho interessante e bem escrito. Ademais, sendo um artigo de jornal, não pode ter a pretensão de oferecer ao leitor muitas evidências empíricas para fundamentar sua tese. A Folha de S. Paulo não é a Brazilian Political Science Review. Mesmo assim, arriscaria afirmar que críticas como esta feita por Fausto têm poucas evidências empíricas sistemáticas à sua disposição.

De um ponto de vista institucionalista, não há evidências a provar que o governo lulo-petista seja diferente do governo tucano a que sucedeu. No limite, a crítica tucana me lembra os choramingos de alguém que, numa competição qualquer, é derrotado por um adversário muito melhor preparado. É como se essas críticas dissessem: «ah, não vale, eles dominaram o governo, o Estado, ganharam as eleições duas vezes e vão ganhá-las de novo! Eles se prepararam mais do que nós!» Ao que, parece-me, um petista poderia retrucar: «sim, mas... E daí?»

A crítica de Fausto deixa implícita uma outra, a saber, a crítica ao aparelhamento do Estado feito pelo PT. Talvez essa crítica possa ser bem fundamentada. Gostaria de dar uma olhada em A Elite Dirigente do Governo Lula, de Maria Celina D'Araújo, estudo que serviu para embasar algumas matérias da Veja sobre o aparelhamento do Estado durante o governo Lula. Porém, pelo que pude depreender de uma leitura rápida da orelha do referido livro, o estudo se limita ao próprio governo Lula, de modo que não podemos ter qualquer base de comparação.

Além de frágeis - ou talvez por isso mesmo -, as críticas tucanas ao lulo-petismo pressupõem uma definição ampla do termo democracia. Na segunda metade do século XX, a transição de muitos regimes do autoritarismo para a democracia - aquilo que Huntington chamou de «the third wave» - contribuiu para um enorme debate sobre o que é democracia e como defini-la. Hoje, o debate se deslocou da transição para uma discussão sobre qualidade da democracia. A julgar pelo pouco que conheço sobre essa literatura, ela não oferece indicadores ou condições a partir das quais se possa afirmar que o governo petista é uma ameaça à democracia. Seria preciso defini-la de modo bem mais amplo do que o fazemos.

Sendo isto apenas uma breve divagação, sinto-me eximido da responsabilidade de concluir o que quer que seja. Se tivesse, porém, que fazê-lo, diria que a intelligentsia tucana tem duas opções. Uma é apresentar evidências de que o modus operandi de um governo petista é de fato nocivo para a democracia brasileira. A outra seria encampar críticas ao petismo que a esquerda brasileira considera como sendo de «extrema direita»: denunciar a relação entre o PT e o Foro de São Paulo, criticar as posições petistas contrárias ao cristianismo, etc.



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