segunda-feira, 29 de setembro de 2008

A Revolta

Meu desenvolvimento intelectual até os vinte e três anos pode, grosso modo, ser dividido em três momentos. Desnecessário dizer que a divisão em momentos só é útil para efeito explicativo. É evidente que as coisas são muito mais sutis; as filigranas do desenvolvimento intelectual – conclusões, dúvidas, inquietações – não podem ser traduzidas por uma categoria grosseira como um «momento». Feita a ressalva, prossigo.

No primeiro, convenci-me de que o mal no mundo tinha como causa o capitalismo. Como diz Gustavo Corção, em A Descoberta do Outro, «fiquei convencido, nesse tempo, de que o mundo estava torto, intencionalmente torto, por malícia humana, para benefício exclusivo da detestada classe burguesa. Não havia tragédia nem mistério de iniqüidade, o que havia era trapaça. Um jeito que se lhe desse e o mundo endireitaria.». É verdade que, enquanto fui marxista, nunca soube até que ponto era possível acusar os burgueses por sua suposta maldade, e até que ponto eles eram inocentes, sendo a classe burguesa a única culpada. Todo marxista deve viver um dilema parecido. Porque, lá no fundo, ele quer alguém de carne e osso para culpar; ele quer alguém de quem possa dizer «é tudo culpa dele!». Mas aí ele começa a ler O Capital e, já no prefácio, descobre que «as pessoas só interessam na medida em que representam categorias econômicas, em que simbolizam relações de classe e interesse de classe». O marxista deve, portanto, excluir a responsabilidade do indivíduo por relações das quais não é senão uma criatura. Pra mim, de qualquer forma, o capitalismo era um mal e quem quer que o sustentasse também.

Num segundo momento, por razões várias, abandonei as acusações ao capitalismo e encontrei no cristianismo o responsável pela decadência humana. Não seria apropriado, aqui, afirmar que eu julgasse o homem responsável pelo mal, pelo menos não da maneira como esta afirmação é, de início, compreendida. A própria concepção de «mal», pensava eu, era uma criação de cristãos ressentidos. Nisto eu apenas repetia Nietzsche, para quem, em todos os estados originais da humanidade, «mau» significou o mesmo que «individual», «livre» e «imprevisível»; foi o cristianismo e todo seu ressentimento que denominou o homem forte e livre como mau e imoral. A doutrina cristã, por conseguinte, não era culpada pelo mal em si – porque, para mim, isso não existia –, mas por fazer com que o homem forte se sentisse culpado da própria força.

No terceiro momento, aprofundei meu pessimismo com relação ao homem e intuí que a idéia de «bem» e «mal» não era, assim, simplista como julgava antes. Ademais, seria otimismo em demasia acreditar que as mazelas humanas tinham como causa o capitalismo. A causa deveria, forçosamente, ser muito anterior. Intuí, então, que o homem era inclinado para o mal e toda a Criação era má. Simples assim.

Minha revolta chegou, então, a seu apogeu. Foi aí que me dei conta – e isso me parece hoje de uma obviedade patente – que toda revolta tem uma base comum; toda revolta é, de certa forma, a mesma revolta, diferindo apenas em profundidade. Isso se me tornou evidente com a leitura de Ravachol e os Anarquistas, reunião de documentos e depoimentos de anarquistas franceses organizada por Jean Maitron. De toda a bibliografia anarquista que conheço, esta é a obra mais interessante. Trata-se de um retrato da face mais radical do anarquismo: a chamada «propaganda pela ação», isto é, o terrorismo individual visando o Estado e a burguesia, no final do século XIX e início do XX. Entre os documentos, encontram-se as memórias de Ravachol, a defesa de Emile Henry (condenado por explodir o Café Terminus) e trechos do diário de Garnier. E por que esses documentos são tão interessantes? Porque revelam a revolta em seu grau superlativo. Diferentemente dos anarquistas que permaneceram em sindicatos, «demasiado cobardes para se revoltarem», esses terroristas não reconheceram a ninguém o direito a lhes julgar. Considerando-se oprimidos não só por seus patrões, pelo Estado ou pela burguesia em geral, mas – por que não dizer? – por Deus mesmo, declararam guerra à sociedade e permaneceram criminosos até serem presos ou mortos. Ravachol, Emile Henry e companhia são a realização histórica do único de Max Stirner. Alguns deles seguiram um caminho semelhante ao que afirmei ter feito acima. De início, flertaram com os comunistas; depois, conheceram os anarquistas e entraram em sindicatos; por fim, transbordando de revolta, passaram ao terrorismo – o que, por favor, eu nunca fiz. Creio, porém, que se tivessem vivido um pouco mais compreenderiam o aspecto gnóstico de sua revolta e, quem sabe, arrepender-se-iam e voltariam atrás.

Hoje, sou tentado a enxergar um comunista apenas como um revoltado sem muita profundidade. Já o anarquista, esse foi um pouco além. Quando, porém, o revoltado antevê o caráter metafísico de sua revolta, aí ele se torna um caso mais interessante. Por paradoxal que possa parecer, creio que o aprofundamento da revolta pode ser um caminho para superá-la. Pelo menos o foi para mim. Porque, chegando ao limite de minha revolta e vendo a completa impossibilidade de sustentar aquela posição, decidi fazer o caminho de volta.

Um comentário:

Ronald Silva Robson disse...

"Por paradoxal que possa parecer, creio que o aprofundamento da revolta pode ser um caminho para superá-la."

Foi precisamente essa a conclusão de Chesterton no começo do século passado: a esperança é que o cético duvide, mes duvide tanto, a ponto de, num momento sublime, suspeitar de sua própria saúde mental.

A propósito, bom blog.

Um abraço.