terça-feira, 6 de janeiro de 2009

Ignorando a Bíblia

A maior parte dos textos anarquistas do século XIX revela uma concepção de natureza humana boa e solidária, que, se não se realiza, é apenas por ser reprimida pelo poder – Estado, Igreja e instituições repressoras em geral. A idéia caiu um pouco em desuso na segunda metade do século XX, o que não impediu, porém, que um anarquista charlatão como Chomsky continuasse dizendo a mesma coisa.

Em Deus e o Estado, publicado em 1882, Bakunin escreve: «Fazei com que todas as necessidades se tornem realmente solidárias, que os interesses materiais e sociais de cada um tornem-se iguais aos deveres humanos de cada um. E, para isso, só há um meio: destruí todas as instituições da desigualdade; estabelecei a igualdade econômica e social de todos, e, sobre esta base, elevar-se-á a liberdade, a moralidade, a humanidade solidária de todos».

Kropotkin, em Moralidade Anarquista, panfleto que tenta explicar a base da moralidade, defende que o sentimento de solidariedade é a característica fundamental de todos os animais que vivem em sociedade. Contrapondo-se à idéia de que a busca pela sobrevivência seria o «motor» do desenvolvimento animal, Kropotkin afirma que, em todas as sociedades de animais, «a solidariedade é uma lei natural de muito mais importância do que a luta pela existência». Sua crença na solidariedade e ajuda mútua é tal que, para ele, não há necessidade de impô-las. Pelo contrário, seria justamente em condições de plena liberdade e igualdade que a solidariedade poderia se desenvolver. Assim, diz Kropotkin, «nós não temos medo de dizer: ‘faça o que quiser; aja como quiser’; porque estamos convencidos de que a grande maioria da humanidade, em proporção ao grau de esclarecimento e completude com os quais ela se liberta dos grilhões existentes, irá se conduzir e agir sempre numa direção útil para a sociedade, assim como estamos persuadidos de antemão que uma criança irá um dia andar sob os dois pés e não de quatro».

A idéia de um poder que impede a boa natureza humana de se realizar plenamente está presente também n’A Anarquia, o panfleto mais conhecido de Malatesta. Diz ele: «Desaparecidos os governos, estando a riqueza social à disposição de todos, todos os antagonismos desaparecerão rapidamente entre os povos, e a guerra não terá mais razão de existir».

Pergunto então aos meus botões: esses caras leram a Bíblia? Ao trocarmos alguns olhares, eles se revelam tão chocados quanto eu. Porque, ao lê-la, ficamos com a impressão de que a natureza humana é um pouquinho, mas um pouquinho só, menos boa e solidária do que esses anarquistas pensavam.

Como ter tanta esperança no homem se o próprio Deus viu que «a maldade do homem era grande sobre a terra, e que era continuamente mau todo desígnio de seu coração» (Gn 6, 5)? Como manter qualquer centelha de esperança de que o homem irá (sozinho) erigir sobre a terra o reino da liberdade e da moralidade, logo ele, a criatura cuja maldade corrompeu toda a criação, como atestam as palavras de Deus: «Chegou o fim de toda carne, eu o decidi, pois a terra está cheia de violência por causa dos homens» (Gn 6, 13)? Não obstante, como acreditar no homem se, mesmo após o dilúvio, Deus afirma a Noé que «os desígnios do coração do homem são maus desde a sua infância» (Gn 8, 21)? Se, ao ser questionado por Moisés sobre que fizera o povo para atrair sobre si pecado tão grave, Aarão responde: «Que não se acenda a cólera do meu senhor; tu sabes quanto este povo é inclinado para o mal» (Ex 32, 21-23)? Se, além disso, Deus diz a Moisés que os israelitas devem fazer borlas nas pontas das suas vestes, e na borla da ponta colocar um fio de púrpura violeta, para que, vendo a borla, lembrem dos mandamentos de Deus e os coloquem em prática, «sem jamais seguir os desejos dos vossos corações e dos vossos olhos, que vos têm levado a vos prostituir» (Nm 15, 37-39)?

É do mesmo homem que estamos falando? Os socialistas do século XIX pensavam no mesmo homem que Moisés, quando este, em seu segundo discurso aos israelitas, suplicou a Iahweh: «Não atentes para a obstinação deste povo, para sua perversidade e seu pecado» (Dt 9, 27)? E isso porque nem passamos do Pentateuco.

Meus botões permanecem calados. Francamente, não posso acreditar que os socialistas do século XIX não tenham lido as Escrituras, sendo eles filhos de nobres (Kropotkin), de proprietários de terras (Bakunin) ou apenas de família abastada (Malatesta). É claro que eles as leram, mas, movidos por uma enorme revolta, acabaram por radicalizar sua preocupação com os oprimidos e acreditaram ser possível remediar sua situação miserável aqui, neste mundo. Se ela nasceu com o cristianismo, a preocupação com os oprimidos (ou vítimas, como prefere Girard) tornou-se, por meio dos socialistas, uma monstruosidade oposta a ele. Acreditando-se muito lúcidos, os socialistas se esqueceram do ceticismo salutar que os textos bíblicos mantêm com relação ao homem.

2 comentários:

Zé Luis disse...

Nem anjos nem demônios, no entanto. Mas o texto está bom. Peca-se mais entre os anarquista por ingenuidade, mistura de boa fé e pouco conhecimento da realidade humana do que por pessimismo. Por isso que o pessimismo é o estado de humor mais saudável.

Anônimo disse...

Ótimo post. É sempre espantoso como muitos dos que se empenham em realizar o paraíso na terra se amparam num otimismo bocó que, curiosamente, embora seja capaz de achar o homem radicalmente bom em essência, repele qualquer tentativa de pôr essa virtude sob a autoridade de algo superior (seja Deus, seja uma moral universal etc), a qual é indispensável a esse saudável ceticismo de que você fala.