terça-feira, 11 de agosto de 2009

Gnosticismo Revisitado

«Assim como o fiel é sufocado pela água salgada da dúvida que o oceano não pára de lançar em sua boca, assim existe também a dúvida que o incrédulo nutre a respeito de sua incredulidade e da totalidade real do mundo que ele resolveu erigir em seu tudo. Jamais terá certeza plena da completude de tudo o que viu e que ele declara ser tudo.»


Joseph Ratzinger, Introdução ao Cristianismo



A Verdade não existe. Não há senão verdades, no plural. A história, tal qual a conhecemos, não é a história verdadeira, mas uma entre outras possíveis. Ela é feita de vencedores e vencidos, mas, para o bem ou para o mal, são os primeiros que a escrevem. Tampouco há bem e mal, porém. Há, sim, os caminhos de cada um, e a busca solitária pelo próprio conhecimento. A crença numa Verdade e em valores objetivos leva ao fundamentalismo, à indisposição ao diálogo e à inclinação ao ressentimento. O caso é ainda pior se uma instituição se arroga o direito de ser a encarnação da Verdade – ou a representante daquele que disse ser tal encarnação, o que dá no mesmo. Aí a prepotência não tem limites e as conseqüências são terríveis. Felizmente, porém, há quem resista à prepotência. No século XVIII, ela se deu pelos iluministas Kant, Hume, Diderot, Voltaire. E, nos primeiros séculos da era cristã, tal resistência à opressão fundamentalista se deu pelos gnósticos.


Este é, em síntese, o argumento da professora da USP Marília Fiorillo em O Deus Exilado: Breve História de uma Heresia (Civilização Brasileira, 2008). Como disse, é uma síntese. O livro se divide em sete partes independentes. A primeira narra o drama dos mandeanos, «único grupo gnóstico que sobreviveu em todo o mundo». Os mandeanos habitavam o Iraque e agora sofrem as agruras da guerra. A segunda parte, muito interessante, revela as disputas ocorridas em torno das descobertas, no século XX, da Biblioteca de Nag Hammadi e do Códex Tchacos (este já em 2006). Ambos são conjuntos de evangelhos gnósticos. Juntos, reúnem os Evangelhos de Tomé, Judas, Maria e tantos outros. Fiorillo narra habilmente as batalhas entre cartéis de eruditos a disputar os textos então recém-descobertos. Se o leitor ainda via acadêmicos com olhar romântico, receberá um balde de água fria. A autora nos conduz pelas acirradas disputas entre intelectuais franceses e alemães; tais disputas fizeram com que os textos da Biblioteca só fossem divulgados na década de 1970, trinta anos depois de sua descoberta, em 1945. Tudo graças à avidez pela notoriedade que lhes resultaria a tradução e o comentário das antiguidades.


Tudo isso porém, são aperitivos. O conteúdo substantivo do livro está nas partes III a VI, onde Fiorillo exporá mais detidamente – mas sempre em linguagem leve e fácil – o que resumi no primeiro parágrafo. Se a linguagem é leve, porém, o mesmo não se pode dizer das opiniões da autora acerca da Igreja. De fato, trata-se de um libelo contra o catolicismo, donde não ser uma surpresa a referência, feita logo na introdução do livro, aos iluministas supracitados. Para Fiorillo, a Igreja e sua suposta «Verdade» são tão-somente o resultado de uma vitória histórica. E essa vitória, diga-se de passagem, não teve nada de gloriosa. Não fosse Constantino a apadrinhar os católicos – uma entre as inúmeras seitas cristãs que pululavam no momento – e hoje não haveria a Santa Igreja.


No início da cristandade, diz Fiorillo, havia diversas igrejas cristãs. Uma delas caiu nas graças de um imperador romano e se tornou a religião oficial do Império. As outras, a partir daí, foram oficialmente consideradas «gnósticas» ou «hereges». Mas o que é o gnosticismo? Difícil responder. Fiorillo considera que a melhor resposta foi dada pelo filósofo Hans Jonas. Segundo ele, um fenômeno gnóstico deve cobrir duas exigências: (1) «O gnosticismo é a convicção da identidade divina do homem, e de que esta diz respeito tanto à sua proveniência como ao seu destino»; (2) «A gnose não se faz por procuração; é um processo estritamente pessoal, que permitiria ao indivíduo libertar-se do domínio do mal, isto é, do mundo material de vicissitudes».


Para os gnósticos, este mundo é mau e não foi criado por Deus. Jonas e Fiorillo parecem simpatizar com a idéia, como fica claro neste trecho: «Horrores como os ocorridos em Auschwitz – ou em Kosovo, Sarajevo, Ruanda, Darfur, Libéria, Bagdá, Cabul; a lista é numerosa e sempre passível de atualização – nos convencem de que o mundo, se um dia foi criação divina, já há muito deixou de ser.». Assim, pois, das duas uma: ou Deus é mau, ou não participou da Criação. Aqui não posso deixar de me furtar à pergunta: será que Fiorillo sabe o quão má ela mesma é? Que fique claro, eu nem mesmo a conheço. Mas, sabendo ser da mesma espécie que ela, e sabendo o quão mau eu sou, imagino que ela me seja semelhante neste ponto, ao menos um bocadinho. Pois será então que ela se julga alguém tão distante dos responsáveis pelas atrocidades mencionadas? Dizer que Deus não é bom ou que Ele é alheio à Criação não parece uma declaração de «eu não assumo qualquer responsabilidade pelo mal no mundo»?


Nos ataques mordazes ao catolicismo, Fiorillo gosta de mostrar as semelhanças deste com o fundamentalismo islâmico. Assim, comenta que, para Tertuliano, o ato de se barbear era ímpio e as mulheres deveriam se cobrir com véus. Tertuliano nasceu em Cartago, hoje Tunísia, em 150. Converteu-se por volta dos 40 anos à fé católica. Por volta de 207, rompeu com os católicos e ingressou nas fileiras da heresia montanista.


Noutro momento, Fiorillo alude à inflexibilidade dos primeiros cristãos (católicos) e de sua inclinação pelo martírio. Nisto eram «insuflados pelos bispos, que os exortavam a celebrar o martírio como a oportunidade de imitar a ‘paixão de Cristo’». Por vezes, diz ela, os juízes eram moderados e queriam mesmo lhes fazer vista grossa, mas os cristãos se recusavam a acender um incenso que fosse num altar pagão. Preferiam a morte. Quase a desejavam.


Como ler algo semelhante e não pensar nos mártires muçulmanos? Aqui faço três observações, duas delas óbvias. A primeira é que os mártires muçulmanos de hoje levam muita gente com eles. A segunda é que a crítica ácida de Fiorillo aos mártires cristãos desconhece que, afinal, não é muito fácil escolher a morte. A maior parte das pessoas hesitaria mesmo em arriscar a vida por um amigo. Parece até que eles escolheram o caminho mais fácil. Por fim, e essa observação não é óbvia porque está no próprio livro, a própria autora tenta, logo em seguida, diminuir o escândalo dos mártires: «Talvez não fosse exatamente assim. Nem os mártires foram tantos, nem o Império tão intransigente.». O martírio pode representar a força de uma idéia, em sua melhor feição, ou a loucura pessoal, na pior. Fiorillo quer pintar o martírio apenas como loucura.


Com o fortalecimento da Igreja Católica, o gnosticismo foi perseguido e sofreu a primeira campanha anti-herética da história, numa antecipação do que seriam as perseguições da Inquisição às heresias. Não fossem as descobertas dos evangelhos gnósticos no século XX, e só saberíamos do gnosticismo pelos depoimentos de seus detratores, como Santo Irineu e Tertuliano. Conforme dito, tudo que restou dos gnósticos foram os mandeanos, seus últimos sobreviventes. Certo?


A despeito de minhas opiniões sobre O Deus Exilado, gostaria de fazer duas considerações finais que, espero, sejam pouco parciais. Em primeiro lugar, pouco do que Fiorillo conta é novidade. Excetuando-se as intrigas por ocasião da descoberta dos evangelhos gnósticos, a trágica história dos mandeanos e algumas poucas informações a respeito do gnosticismo, não há ali nada de novo. Não para quem já tenha lido Nietzsche, Marx, Feuerbach e tutti quanti. O povo mandeano não é tudo que restou dos gnósticos. Basta ver a história da filosofia. Basta abrir o jornal. O discurso gnóstico resta em todo lugar, conquanto sua roupagem varie.


Em segundo lugar, Fiorillo perde em poder de persuasão ao adotar uma postura tão agressiva. Talvez ela não queira persuadir ninguém, como alguns gnósticos, segundo ela, também não queriam. Proselitismo é coisa de crente. Mas aí seria de se perguntar o porquê de escrever e publicar, e ainda com conteúdo tão panfletário. O livro de Fiorillo é um Adversus Haereses às avessas.

Um comentário:

Christian Rocha disse...

Fiorillo demonstra que proselitismo é coisa de gnóstico e de ateu.